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Javier Cercas, autor do livro 'O louco de Deus': "O centro da Igreja já não está em Europa"

O escritor espanhol publica uma novela sem ficção que relata sua viagem a Mongolia com o Papa Francisco

Teo Camino

El escritor Javier Cercas durante su acto de ingreso para ocupar la silla R, en la Real Academia Española DIEGO RADAMÉS EP

"Sou ateu. Sou anticlerical. Sou um laicista militante, um racionalista contumaz, um impío rigoroso. Mas aqui têm-me, voando em direcção a Mongolia com o idoso vicario de Cristo na Terra, disposto a interrogar-lhe sobre a resurrección da carne e a vida eterna. Para isso me embarquei neste avião: para perguntar-lhe ao Papa Francisco se minha mãe verá a meu pai para além da morte, e para levar a minha mãe sua resposta. Tenho aqui um louco sem Deus perseguindo ao louco de Deus até o fim do mundo".

Assim arranca O louco de Deus no fim do mundo (Penguin Random House), a última novela sem ficção do escritor espanhol Javier Cercas, que chega nesta terça-feira, 1 de abril, a todas as livrarias.

'O louco de Deus no fim do mundo', um livro único

Trata-se de um livro único, pois o Vaticano jamais lhe tinha aberto de par em par suas portas a um escritor, mas também de um relato próprio e magistral sobre sua viagem a Mongolia com o Papa Francisco em 2023.

Ao mesmo tempo, O louco de Deus no fim do mundo é um thriller sobre o maior mistério da história da Humanidade: saber se existe a resurrección da carne e a vida eterna.

O título

O livro enfrenta-se ao "enigma central" da vida e apresenta a um narrador "louco" que é uma versão de Cercas.

"Este é o livro mais louco que tenho escrito porque está protagonizado pelo louco de Deus e há um montão de loucos pelas páginas. Para crer no que crê um cristão há que estar um pouco louco. Não o digo eu, o diz o Papa Francisco", assegura.

As mudanças do Papa Francisco

Depois da hospitalização de 37 dias do Pontífice, especulou-se muito sobre o futuro da Igreja e "há uma opinião muito generalizada e compreensível que diz que o mundo está a girar numa direcção contrária às ideias e ao mundo de Francisco. Não sê se dizer que é um giro conservador, porque não acho que caiba chamar a Trump ou Musk conservadores. Eles são outra coisa, pouco recomendáveis, desde depois", tem exposto Javier Cercas durante a apresentação de seu livro na sede do Instituto Cervantes de Madri.

Neste sentido, o escritor considera que "não vai ser fácil" voltar ao mundo anterior à chegada de Francisco porque "as mudanças que tem plotado são muito profundos" e não será fácil os desfazer. "Não acho que o próximo Papa desfaça por completo o que tem feito Francisco. As mudanças que tem plotado este homem à Igreja são profundos", valoriza o autor de Soldados de Salamina.

"Um homem de poder"

Cercas define ao Sumo Pontífice como "um homem de poder" que tem uma ideia "muito clara" do que tem que ser a Igreja Católica.

"O Papa pode, em teoria, tomar todas as decisões, isto é uma monarquia absoluta, mas na prática não é muito conveniente. Tenho a certeza de que ele queria fazer coisas que finalmente não tem feito porque tem achar# que a Igreja não estava preparada", aponta o escritor.

"O centro da Igreja já não está em Europa"

Em sua exposição, Cercas faz questão de que não vai ter uma "contrarrevolución" porque Francisco "tem nomeado mais cardeais que nenhum outro Papa" e são os que decidirão o sucessor do Vaticano. "Elegeu-os para que continuem a linha que ele tem iniciado", sublinha. Ao respeito, valoriza que um das mudanças que tem realizado o Pontífice é que o centro da Igreja "já não está em Europa".

"A mudança tem sido tremendo. Os cardeais agora são de Mongolia, outro de Papúa Nova Guiné, e isso demonstra que o centro da Igreja já não está em Europa. Os detractores de Francisco são muito poderosos, e são muitos, e sonham com dar-lhe um giro completamente diferente à Igreja. Eu acho que não vai ser tão fácil", apostilla.

Os problemas da Igreja, segundo o Papa

Por último, Javier Cercas tem compartilhado alguns dos "problemas" atuais que considera Francisco que tem a Igreja, como o clericalismo, um assunto chamado pelo Sumo Pontífice como "o cancro da Igreja".

"Ele está na contramão de que o clero esteja acima dos fiéis. Francisco diz que o sacerdote tem que estar por adiante do rebanho para o guiar e, ao mesmo tempo, tem que estar dentro do rebanho porque faz parte dele. E também tem que estar por trás do rebanho para recolher e ajudar aos que não podem sair. Mas jamais por em cima", desvela.

Política e catolicismo

O segundo grande problema que vê o Papa na Igreja, segundo Cercas, é o "constantinismo" e a relação que existe entre a política e o catolicismo.

"O imperador Constantino foi o que adoptou o cristianismo como religião do império. Nesse momento, o poder e a religião unem-se e isso é catastrófico. Dí-lo Francisco e é uma obviedad. Quando o poder político e a religião se unem, catástrofe. O cristianismo não é uma religião do poder e a Igreja não pode estar junto ao poderoso. É uma perversión absoluta", afirma o autor sobre uma série de assuntos que se debatem no livro.

A função da literatura

Sobre o livro, Javier Cercas recalca que não realiza uma "defesa da Igreja" e que trata de entender como pensa e funciona a Igreja. "O que faz a literatura não é julgar, para isso estão os juízes. A literatura está para entender, que é o contrário de justificar. Entender é dar os instrumentos para não voltar a cometer os mesmos erros", assinala.

A viagem, segundo o autor, serviu-lhe para dar-se conta da "complexidade" que tem ser o Papa e descreve a Francisco como um homem "em permanente briga consigo mesmo e consciente de suas fraquezas e defeitos". "Minha visão do Papa é bem mais complexa da que era. É um homem de poder, sempre o foi. Por isso teve problemas em Argentina. Foi um homem muito conflictivo e ambicioso, com dotes de comando potentes que às vezes se confundiam com o autoritarismo", assegura.

A saúde do Sumo Pontífice

Em relação com o recente estado de saúde de Francisco no Hospital Gemelli de Roma, Cercas tem comentado que é uma situação normal "de uma pessoa muito maior", e assegura que mandar-lhe-á o livro, ainda que acha que não lê-lo-á.

"Que um senhor de 88 anos tenha problemas de saúde é o normal. O raro seria que estivesse a correr maratonas", remarca Javier Cercas.