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A hipocrisia de H&M: destrói a roupa doada ou envia-a a desaguadouros de África

A corrente de moda sueca diz trabalhar para "fechar o bucle" da 'fast fashion', mas uma investigação demonstra que não é verdadeiro e que opta por afastar as prendas da vista do cidadão ocidental, ainda que implique contaminar mais

Juan Manuel Del Olmo

Interior de una tienda de H&M en un centro comercial

"Para nós, a sustentabilidade faz parte da maneira natural de ser um negócio de sucesso. Sempre nos esforçamos por actuar de maneira ética, transparente e responsável, e esperamos que nossos sócios/as comerciais façam o mesmo". Este é um dos statements que faz H&M em seu site, onde se apresenta como uma empresa comprometida com o meio ambiente e as pessoas.

O gigante sueco da moda também reconhece que, de todo o material que se utiliza na indústria têxtil para fabricar prendas, se recicla menos de um 1 % ao ano. "Isto significa que milhares de toneladas de tecidos terminam em desaguadouros. Ao reutilizar ou reciclar nossas prendas, podemos mudar as percentagens", explicam. Não obstante, um estudo da Changing Markets Foundation titulado Take-back Trickery joga por terra estas declarações e reflete que as prendas doadas a H&M (e também a grandes correntes como Uniqlo ou Zara) têm um destino muito pior ao noivo.

'Let's close the loop'

Os programas de recolhida de prendas servem, em teoria, para que sejam as marcas as que dão uma segunda vida a essa jaqueta ou esses pantalones que um já não usa, mas estão em bom estado. Têm algo de lavagem de consciência: o consumidor deposita-as em grandes contêiners e esquece-se. São as marcas, de novo em teoria, as que se encarregam das doar a entidades benéficas ou às reciclar. H&M propõe estes loables objectivos em seu programa Let's close the loop (Fechemos o círculo ou o bucle).

Uma loja de H&M / EUROPA PRESS - EDUARDO PARRA

A investigação de Changing Markets, levada a cabo entre agosto de 2022 e julho de 2023, rastreó várias prendas que se tinham doado em contêiners de H&M, Zara, C&A, Primark, Nike, Boohoo, New Look, The North Face, Uniqlo e M&S. Tinham sido doadas no França, Reino Unido, Alemanha e Bélgica. Prenda-las eram de boa qualidade e, portanto, consideravam-se aptas para sua reutilização. Para averiguar onde terminavam realmente, colocaram nas mesmas uns AirTags, uns pequenos dispositivos de Apple que funcionam como rastreadores ocultos e mostram a localização real de um objeto.

O 75% da roupa doada 'morre'

Ao todo, 21 prendas fizeram parte da investigação. Três quartas partes das mesmas (16 de 21), "destruíram-se , deixaram-se em armazéns ou exportaram-se a África, onde a metade se tritura ou elimina em desaguadouros", recolhe no relatório.

Por exemplo, uma saia e uma t-shirt de manga longa que foram depositadas numa flalgship de H&M em Londres percorreram 24.800 km desde a capital britânica até ser finalmente arrojadas a um desaguadouro de Mali. Pelo caminho, passaram por uma série de pontos de classificação e armazéns.

"O problema principal é a sobreproducción"

Raúl González é o CEO de Ecodicta, uma plataforma de moda circular que procura ajudar às pessoas a vestir de forma consciente. "Nós o vemos muito claro, o problema principal que tem a moda é a sobreproducción. Estão a produzir-se 150.000 milhões de prendas que se utilizam entre 3 e 7 vezes dantes de ser eliminadas. Ao final gera-se um volume tal que não tem demasiado sentido que se dediquem esforços a reciclar, quando o que deveria se fazer é se focar em produzir menos", conta a este meio.

Resíduos de roupa / FREEPIK

A julgamento de González, o mais recomendável seria apostar por novos modelos de negócio que fossem encaminhados a essa redução. "Com estes modelos, as grandes marcas tentam acercar-se à circularidad, mas a circularidad significa reduzir o impacto em todas as áreas: pode-se ser circular sem ser sustentável, mas não se pode ser sustentável sem ser circular", relata este experiente.

Um "parche" para não enfrentar a verdade

Dantes de languidecer em Mali, essa t-shirt e essa saia de H&M passaram pelo armazém de SOEX Processing Middle East na Zona de Livre Comércio de Hamriyah, em Emiratos Árabes Unidos. Esta é uma sorte de planta de classificação, e tem algo de buraco negro. "Fabricam-se em países em via de desenvolvimento, e para que saiam rentáveis os custos de logística e de envio precisam fabricar muito, rotacionar muito… Assim, o vemos como um parche para não enfrentar a verdade: há que fabricar menos quantidade, mas de maior qualidade", descreve González.

Outra sudadera que foi doada a um contêiner de coleta de H&M de Berlim passou por uma planta de processamento de SOEX, desde onde a levaram à República Checa. Aqui aterrou numa empresa que opera desaguadouros, eliminação de resíduos e reciclaje de resíduos têxteis. Isto é, destruição da roupa para dar outros usos às fibras. A sudadera estava em bom estado e poderia ter-se seguido usando, mas seu destino não foi esse.

Uma mulher com uma carteira da companhia / UNSPLASH

Reusar dantes que triturar

Tal e como recolhe Changing Markets, que a sudadera acabasse assim vai na contramão do que H&M promete fazer com a roupa: a assinatura de moda assegura que a roupa útil comercializar-se-á como roupa de segunda mão. Se não é apta para isso, converter-se-á em outro tipo de produtos, como paños de limpeza. "A última opção, à que H&M se refere como reciclaje, é em realidade o downcycling, onde os têxteis se trituran em fibras têxteis e se utilizam para fabricar, por exemplo, materiais aislantes", explica o documento.

Na mesma linha, um top negro doado em Bélgica passou pela planta SOEX em Bitterfeld-Wolfen, Alemanha. Desde aqui foi enviado ao porto marítimo de Bremerhaven, para terminar num grande mercado de rua de Kinshasa, República Democrática do Congo (RDC), a terceira cidade mais povoada de África.

Desperdicio de roupa no Sur Global

Poderia parecer um acto de caridade, mas não o é: o relatório qualifica de "preocupante" o facto de que a roupa doada às marcas, que deveria seguir os cauces de seus próprios programas de reutilização, "esteja a contribuir ao problema do desperdicio de roupa usada no Sur Global". Ademais, Changing Markets cita ao jornal sueco Aftonbladet, que descobriu que muitas prendas de H&M do plano de devolução em Suécia se enviava a Benín, África do Sul e a Índia; e documentava resíduos têxteis mau geridos no terreno.

Resíduos têxteis / UNSPLASH

Por isso, a conclusão do relatório é que as empresas responsáveis da classificação e o comércio destes têxteis parecem estar a utilizar o Sur Global "como um desaguadouro" longe da vista e da mente dos compradores, "sem responsabilidade alguma sobre os artigos enviados ali". González coincide com esta análise: "Fabricam-se tantas prendas de baixa qualidade que nem sequer estes modelos de circularidad são rentáveis".

'Dead white man clothes'

Há países africanos, explica González, que têm proibido o que chamam as dead white man clothes, a roupa do homem branco morrido "que nós enviamos para lá". Fazê-lo tem efeitos locais perjudiciales: danifica-se a indústria têxtil da região, "porque vêem-se inundados de roupa barata que aqui tem sido usada e mal pode aguentar mais usos".

Tal e como demonstrou ABC NEWS numa extensa reportagem, a orlas da lagoa Korle, em Accra, a capital de Ghana, "se alça um alcantilado à orla do água e em sua cume massa o ganhado". As imagens são espetaculares. E o são porque este alcantilado irregular, de uns 20 metros de altura, não está formado por terra ou pedra, sina por um desaguadouro. "A maior parte (estima-se que o 60 por cento) é roupa não desejada", recolhia o meio.

Enviá-lo "e que se apañen ali"

Com tal volume de roupa de escasso valor, vale-lhes a pena às empresas investir para reciclá-la correctamente? "O mais singelo costuma ser contaminar ou enviá-lo a países em via de desenvolvimento e que se apañen ali, porque parece ser que o meio ambiente desses países nos interessa muito pouco", diz González. Com uma quantidade descomunal de prendas ou de resíduos têxteis de escasso valor, a pelota simplesmente passa a outro tejado.

Uma loja de H&M / UNSPLASH

Ademais, em ocasiões, as marcas premeiam a quem doam roupa em seus contêiners com descontos para comprar mais roupa em suas lojas, de maneira que segue-se estimulando o consumo. "A pescadilla que se morde a bicha", diz González. Apesar da contundência do relatório, com o que realmente poder-se-iam mudar as tornas é com a legislação da União Européia, de modo que, crê o experiente de Ecodicta, relatórios como o de Changing Markets podem servir aos legisladores para saber que teclas tocar.

Uma conduta reincidente

Não é a primeira vez que H&M se enfrenta a estas acusações. Faz 10 anos, The New York Times dizia que a imagem da corrente se estava a ver terrivelmente prejudicada porque se tinha descoberto que a roupa que não se vendia numa de suas lojas era destroçada e atirada ao lixo. "Numa cidade como Nova York, onde em inverno sofrem e falecem muitas pessoas sem teto pelas bajísimas temperaturas, este comportamento asocial tem indignado aos consumidores", se disse então.

Este meio tem contactado com H&M para saber onde termina a roupa que é doada em seus contêiners espanhóis, mas, ao termo desta reportagem, não tem obtido resposta.