A Pomba reabre: "É como entrar no túnel do tempo e viajar a 1900"
A emblemática sala de dance do Raval barcelonés, a mais antiga de Europa, sobe a persiana depois de 16 anos de silêncio

A Pomba recupera suas asas. Depois de muitos amagos, alça o voo, e fá-lo com suas melhores galas: as de princípios do século passado. Os rosetones de motivos florais e os ornamentos dourados, que se acrescentaram em 1919, estão recém pintados. As butacas, de terciopelo granate pintalabios, ainda mantêm o brilho de antanho. Os camareros, vestidos de traje branco, estão a acabar de encher os frigoríficos, e nenhuma das bombillas do grande lustre de aranha ousa piscar: é o instante ao fim. Se um olha ao arredor, dá a impressão de estar a viver em 1903, mas as entradas se vendem por internet, se pagam em euros e estamos em 2023.

A sala de dance A Pomba -cale do Tigre, 27-, a mais antiga de Europa, reabre depois de passar mais de três lustros clausurada pela Prefeitura de Barcelona por causa do excesso de ruído.
A Pomba volta à noite
"Temos feito as obras de insonorización e de segurança apropriadas, mas está tudo igual que faz um século. É como entrar no túnel do tempo e viajar a 1900", expõe a Consumidor Global Mercè March, alma mater do local e mãe do atual proprietário, Pau Solé March.

"A ideia é abrir com regularidade a partir de fevereiro de 2023", aponta a gerente. Deste modo, rompe-se o longo silêncio, mas os mimos voltarão a gestualizarlo à saída do local para tentar respeitar o descanso dos vizinhos.
Há que a viver
Entramos pela porta trasera, de cor granate canalla, e avançamos por um estreito corredor flanqueado por caixas de bebidas que chegam até o teto. "Reserva de palcos e venda de entradas. 31 de dezembro de 2006", pode-se ler num cartaz, o do último dia que A Pomba abriu ao público. Ao entrar na sala, tão versallesca, é um flechazo, é amor a primeira vista, e começa o espectáculo.

Entrar nA Pomba "era como colarse num filme de Fellini, com suas personagens singulares e suas cenas extravagantes", recorda March, quem explica que Os palomeros, os clientes asiduos, formavam um elenco inigualable. Estava A artista, que a cada noite dançava sozinha --porque se cria melhor que os demais-- em frente ao palco; O tigre, um enterrador que baixava de Montjuic a cortejar às garotas com seu traje branco; O Tarzán, um senhor maior e forzudo que se punha a fazer gimnasia adiante de todos; a garota dos lavabos, Águeda, que vendia botões e tinha médias de reposto para as carreiras, e à que todos e todas lhe contavam suas penas; "e um chefe de sala homossexual" que, de repente, se punha a chorar. Umas personagens que o fotógrafo Antoine Passerat capturou em seu livro Tigre, 27 (Editorial Art Blume). "É tão feia por fora e tão bonita por dentro… A Pomba não se pode explicar, há que a viver", aponta March. Quem encherá agora seu majestuosa sala de dance?

Pepita e os demais
"Ontem chamou-me Pepita. Disse-me que acaba de cumprir 103 anos e que lhe reservemos o palco 17 em Nochevieja", explica March sobre a que possivelmente seja a cliente mais fiel e veterana dA Pomba. Segundo conta a gerente, Pepita começou a frequentar a sala de festas aos 18 anos, quando saía de casa de seus pais sem dizer que se ia dançar a um local do então Bairro Chinês. Neste ano irá junto a suas sobrinhas.

A sala tem um aforo de 1.000 pessoas, e March assegura, a dois dias de Nochevieja, que já têm vendido ao redor do 80 % das entradas através da plataforma Diz. O passe inclui uma consumición, concerto de jazz e sessões de vários pinchadiscos, e as copas extra vão a 12 euros.
Uma sala de festas emblemática
Nos frescos do teto -faz de Salvador Alarme, autor das pinturas do Liceu-, mulheres e homens dançam enquanto, ao longo dos últimos 120 anos, têm visto passar por ali embaixo a Picasso, Dalí, Almodóvar, Barceló, Pepita e tantos outros.
A cidade de Barcelona e o sector do lazer noturno "têm-lhe de render uma homenagem, pois não passa a cada dia que um estabelecimento nascido no ano 1903 reabra suas portas, e menos após estar 16 anos sem abrir ao público", aponta o secretário geral da patronal catalã do lazer noturno Fecasarm, Joaquim Boadas. Pese a estar catalogada como bem de interesse urbanístico e gozar da protecção da cidade, esta jóia patrimonial não tem recebido subvenção alguma por parte das instituições e tem sobrevivido graças à organização de eventos privados e rodajes pontuas. Agora, A Pomba recupera suas asas, mas lhe corresponde ao público lhe ensinar a voar.