No centro exato da habitação, um lustre alumbra o tabuleiro apoiado sobre a mesa. Ali, fichas amarelas, azuis e vermelhas simulam um conflito militar. Quim Dorca ajusta-se as gafas e inclina o rosto sobre o mapa para antecipar movimentos. A suas costas, uma estantería interminável –como essas bibliotecas de Borges– exibe jogos de mesa colocados com uma harmonia precisa.
Dorca não só é um empedernido jogador, também é sócio fundador de Devir Iberia e diretor de marketing de sua matriz, a multinacional dedicada a editar e distribuir jogos de cartón e dados, que neste ano cumpre um quarto de século.
A história de Devir Iberia
Quando esta cronista lhe confessa que mal sabe mover ficha no Parchís, recebe de repente seu convite como uma epifanía: "Pois dá o salto!", diz. Algo em seu tom faz que o mundo dos jogos de mesa, nesta era dominada por ecrãs e algoritmos, seja fascinante e irresistible.
Foi no ano 2000 quando Dorca abriu a filial barcelonesa da empresa brasileira Devir, com mais intuición que certezas. Vinte e cinco anos depois, facturar 20 milhões de euros em Espanha e possui um catálogo de 800 títulos, muitos dos quais procedem da editorial andaluza Maldito Games, que, tal e como informou Crónica Global, foi adquirida por Devir a princípios de 2025.
--Devir cumpre 25 anos com um catálogo consolidado. Como têm evoluído as preferências e expectativas do consumidor de jogos de mesa neste quarto de século?
--Faz 25 anos, os jogos de mesa estavam muito unidos à campanha de Natal, a promoções televisivas, e reduziam-se a uma série de jogos e marcas que levavam 30 anos sendo sempre os mesmos. Eram, em esencia, um presente associado ao mundo infantil e familiar.
--Quando chegou a mudança?
--A grande mudança estrutural chegou com os Eurogames, com títulos como Provam ou Carcassonne. Estes jogos apelaram ao tempo de lazer de uma geração que tinha crescido jogando, mas que agora procurava experiências mais interessantes, baseadas na tomada de decisões em lugar de depender meramente da sorte. Queriam compartilhar tempo de qualidade de forma presencial, jogar em família sem pressas, num meio sem interrupções constantes do móvel nem a ansiedade dos ecrãs.
--Que impulsionou esta mudança?
--Os verdadeiros artífices deste mercado têm sido os jogadores que começaram com estes jogos no final dos noventa e princípios dos 2000, convencendo a outros. Influiu a produção de jogos a cada vez mais interessantes e variados que se vendem durante todo o ano. Já não se promovem em televisão, sina através de redes sociais, YouTube, grupos com comunidades de interesse e lojas especializadas. Pouco a pouco, converteu-se numa indústria de massas.
--Mas, entre finais dos noventa e os primeiros 2000, o que a gente queria eram videojuegos...
--Sim, quando nós começamos, nos diziam que a gente só queria videojuegos, não jogos de mesa. A experiência que recordavam era aburrida, durava quatro horas, eram injustos, e tudo dependia de um dado. Ao oferecer um produto de muita mais qualidade, a gente não é tonta. Quando tem uma boa experiência, quer repetir e procura variedade. A indústria passou de 50 jogos novos ao ano em 1990 a uns 5.000 em 2025. Multiplicou-se por 100 a quantidade de novidades no mercado.
–Vossa forma de promover os jogos tem mudado desde os inícios de Devir?
--Não tínhamos dinheiro para competir com as grandes multinacionais, tanto espanholas como norte-americanas. Tivemos que procurar outra forma, e o fizemos mediante demonstrações de produto, indo a feiras e a festas maiores nos povos. Chegamos a realizar mais de 3.000 eventos de jogo em Espanha ao ano. Construímos o canal de YouTube, DevirTV, que se converteu num referente onde a gente pode encontrar tutoriais de qualquer jogo. Ademais, utilizamo-lo para promover nossos jogos com um noticiario mensal, permitindo aos aficionados ou ao público em general estar ao tanto das novidades que vão saindo. Isto é, o marketing que usamos agora não tem nada que ver com o que se utilizava faz 25 anos. A promoção baseia-se em provar o produto e no uso das redes sociais.
--Devir tem rompido recordes com jogos como 'Provam', e 'Cities' inclusive foi reconhecido como Brinquedo do Ano 2024. Está claro que têm sabido chegar a um público muito amplo com as campanhas que mencionava. Em seus inícios, a concorrência eram os videojuegos. Hoje, como competem com gigantes do entretenimento digital como Netflix ou TikTok?
--Há algo claro, e é que a gente procura experiências que não sejam excessivamente caras e que ofereçam um tempo compartilhado de maneira presencial com outras pessoas. Isto é uma questão antropológica e cultural. À gente gosta de estar com gente. E os ecrãs, geralmente, criam barreiras entre gerações e entre pessoas. As famílias que tentam sacar aos adolescentes de sua habitação não podem o fazer os obrigando; têm que lhes oferecer algum tipo de actividade que seja retributiva e memorable.
--Como um jogo de mesa.
--Os jogos de mesa, tal como estão concebidos agora, não duram tanto momento. Podem durar meia hora, uma hora, etcétera. Mas, e não me refiro só aos nossos, sina aos de toda a indústria, estão pensados para ser experiências verdadeiramente divertidas e satisfatórias. E a gente, quando os prova, o vê.
--Então, para você, a população, em plena era digital, quer afastar dos ecrãs?
--Em Estados Unidos, a nível de rendimentos, a gente com menos recursos consome mais três vezes ecrãs que a gente com mais recursos. Isto significa que a gente com mais recursos tem mais alternativas de lazer fora do que é o ecrã, que é uma actividade totalmente passiva. Vão-se um fim de semana a esquiar, outro à montanha… Em Europa passa o mesmo, a gente tenta encontrar desculpas para não estar adiante do ecrã. Isto é algo que temos observado e, ademais, a gente procura variabilidad. Não compram um jogo e ficam só com esse; provam e procuram novos. Isso é o bom.
--Com milhares de títulos novos a cada ano, como elegeis que jogos lançar e daí critério seguis para destacar produtos que liguem com o consumidor?
--Actualmente, com a integração de Maldito Games, lançaremos aproximadamente 120 jogos ao ano. Elegemos uns dez jogos que consideramos "próprios", isto é, jogos que os autores desenvolvem directamente para nós. Mas os jogos restantes costumam ser produções de nossos sócios comerciais internacionais, com os que já trabalhamos em outros títulos. O que fazemos é licenciar suas novidades para nossos mercados: o italiano, o catalão, o espanhol e o português. Somos uma editorial que cobre todos os segmentos e abarcamos desde o jogo infantil até o party game, o jogo familiar, o jogo para jugones, inclusive o wargame e os jogos de papel.
--A recente integração de Maldito Games em Devir amplia significativamente sua oferta de jogos mais complexos ou "experientes". Que benefícios diretos esperam os consumidores desta união?
--Os consumidores que já conhecem a Maldito Games o que querem é que Devir não toque nada de Maldito Games. E parece-nos bem, porque eles já o faziam bem. Por isso não queremos tocar nada, ao invés. Queremos potenciar todas as coisas que já faziam bem e aprender deles.
--Ainda que vosso catálogo cobre diferentes segmentos, há jogos que conseguem ligar a gerações muito diferentes, como avôs e netos. 'Código Secreto' é um bom exemplo. Que características fazem possível esse tipo de conexão intergeneracional?
--Essa é a pedra filosofal. Há jogos que são mais universais. Aqui há dois aspectos. O primeiro é que tem que ter uma porta de acesso fácil, isto é, o regulamento não deve ser excessivamente longo e a gente o tem que poder entender com cinco minutos de explicação. Depois, as mecânicas e as dinâmicas do jogo têm que ser o suficientemente universais para que não sejam de nicho. E ademais, têm que ser interessantes. Código Secreto é um ganhador nesse sentido, como também o é A Polilla Tramposa, um jogo que se pôs de moda neste ano.
--No mundo dos jogos de mesa, vendo que ainda funcionam muitos jogos do século passado, se pode dizer que está todo inventado? Ou ainda há um espaço para a inovação real?
--É verdadeiro que entre o ano 1995 e o 2005, o mercado e os autores contribuíam a cada ano uma mecânica que não tinha sido explorada: o card driven, o roll and write, o deck building… Posteriormente, quiçá a partir de 2005, não estão a surgir grandes inovações em termos de mecânica. O que sim estão a sair são jogos que, aproveitando as mecânicas existentes, fazem uma combinação delas que se ajusta ao preço, à temática, à dificuldade do jogo e ao público ao que vai dirigido. Tem-se sofisticado muito a edição, mas o verdadeiro é que saem menos coisas realmente inovadoras.
--Por desgraça, ocorre em todas as indústrias culturais.
--Sim. O cinema de mass market já elabora guiões com um pouco de sexo, um pouco de perseguição, um pouco de intriga, todo dosificado. E os bestsellers literários, exactamente o mesmo. O que lhe está a ocorrer ao jogo de mesa é que se está a converter num ícone pop, no sentido de cultura popular ao mesmo tempo que objeto cultural. Portanto, sofre das mesmas coisas que o resto de produtos culturais.
--Ante este panorama, Devir sacará uma novidade que seja realmente uma novidade?
--É o que queremos, mas os autores não no-las trazem. São surpresas. Um caso curioso é Código Secreto. Levo na indústria do jogo de mesa desde o ano 89, e este jogo é de 2015. Eu pensava que todos os jogos de palavras estavam já inventados. E quando Vladimír Suchý sacou Código Secreto com Czech Games Edition, me levei uma surpresa fantástica. Voltar a dar-lhe uma volta à mecânica de palavras e de campos semánticos compartilhados com uma mecânica diferente para grupos, e que ademais seja um party game, é algo que ninguém podia antecipar. Mas isto é pela genialidade do autor. Nós não podemos apanhar a um autor e lhe dizer: "Faz-me o favor de ser genial e traz-me um jogo com uma mecânica diferente às que já existem".
--Fabricar caixas, fichas e cartas contamina. Que fazem para ser mais ecológicos? Usam materiais reciclados ou evitam plásticos desnecessários?
--Sim, muitíssimo. Na indústria está a fugir-se do plástico. Estão a utilizar-se resinas, madeira. Em vez de retractilar com plástico baralha-las, a cada vez usa-se mais papel. O público objectivo relacionado com o lazer do jogo de mesa em Europa e em Estados Unidos é muito sensível ao impacto e a impressão de contaminação que podem gerar os produtos. Toda a indústria leva anos trabalhando em isto. De facto, a indústria é bastante líder neste aspecto. E todo mundo paga suas quotas pela utilização de papel, etcétera. Não sou um experiente em produção, mas é um tema recorrente e a cada ano há melhoras nesse aspecto.
--Jogar a 'Provam' em digital é mais barato. Não mata isto as vendas do físico?
--Não, em absoluto, porque a experiência não é a mesma. É como ir a um casamento e conhecer a uma pessoa que te atrai e combinar com ela para ir a cenar, ou conhecer a uma pessoa através de um aplicativo e só interatuar mediante o computador. Não têm nada que ver, são duas experiências diferentes. O jogo de mesa contribui o facto da presencialidad, e isso é imbatible. Para algo se chama "de mesa".
--Há um artigo do diário 'O Mundo' que diz que 'Provam' é o jogo de mesa com mais sucesso do século XXI. Por que?
--Primeiro, porque foi o primeiro em destruir o mito de que os jogos eram longos, aburridos e repetitivos. Provam é um jogo que a cada vez que o pões na mesa é diferente. Foi o primeiro em escrever um regulamento tão bom, tão bem facto e seguindo passos com exemplos, o que faz que todo mundo jogue a Provam da mesma maneira. Agora parece normal, mas dantes se tinham que acrescentar regras adicionais para os fazer interessantes. Este jogo faz que todos os jogadores estejam atentos até o último movimento. Há muita tensão ao final e isso faz que se queira voltar a jogar. E claro, como tem rejugabilidad porque o tabuleiro é sempre diferente e a situação inicial é sempre diferente, tem provocado um fenómeno que tem arrasado com todo o que tinha dantes.
--Como compete Devir com o gigante Hasbro, que vende jogos clássicos e em massa (Monopoly, Risk, Cluedo, Trivial, Um) em grandes superfícies como O Corte Inglês ou Carrefour?
--Eu acho que o negócio de Hasbro e o negócio de Devir são diferentes. Eles vendem presentes que compram os avôs ou os tios por nostalgia e os presenteiam a seus netos e sobrinhos, não necessariamente para jogar com eles, sina como uma demonstração de afecto. Nós vendemos jogos, com novidades constantes, para gente que sabemos que os vão jogar. São a mesma indústria, mas suas marcas e produtos correm em paralelo. Culturalmente, não é o mesmo produto.
–Quim, você, a que jogo de mesa joga?
--Eu jogo Wargames normalmente. Com minha mulher e minha família jogamos Eurogames, mas mais modernos que Provam, como Ark Nova. Muitos jogos de cartas novos, como The Crew ou Scout. Mas eu jogo Wargames normalmente quando tenho tempo. Jogos de guerra, porque é ao que jogava faz 40 anos e ao que quero seguir jogando até que já não esteja entre vocês.
--Por curiosidade, quantos jogos de mesa tem em casa?
--Em casa só tenho uns 450 ou assim. Tenho uma habitação só para jogar.