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O escorbuto espreita, aqui, hoje e em terra firme

Pode parecer-nos um anacronismo e, em boa lógica, assim deveria ser, mas a doença causada pelo déficit de vitamina C está repuntando em países desenvolvidos e pessoas acomodadas. Neste artigo reflexionamos sobre a causa e sua (fácil) solução

O consultor dietista-nutricionista Juan Revenga e os alimentos diferentes, não os suplementos / Fotomontagem CONSUMIDOR GLOBAL

Há autores que sustentam que o escorbuto, ao longo da história, e em especial durante a Idade Moderna, se levou mais vidas por diante no mar que todas as tormentas e tifones juntos. Há quem afirma, ainda que seja francamente complicado ter uma estimativa precisa, que o número de vítimas do escorbuto entre os séculos XV e XVIII pôde atingir, num cálculo bastante conservador, os dois milhões de marinheiros.

Ao mesmo tempo, terá quem ache que o escorbuto é uma doença amplamente superada e que, de se apresentar hoje em dia, só aparecerá em meios de pobreza e vinculados à carestía e falta de alimentos. Mas equivocar-se-iam ao pensar assim. A recente notícia de uma mulher de 45 anos, uma executiva de Barcelona, aquejada de escorbuto, serviu para abrir-nos os olhos a todos.

Que é o escorbuto?

A causa do escorbuto, uma doença carencial, é o déficit de vitamina C na dieta. Naqueles marinheiros que a partir da Idade Moderna se enrolaban em longas travesías marítimas se devia, por tanto, à falta de alimentos frescos, em especial de frutas e verduras. Custou muito, muitíssimo, naqueles séculos, o tomar consciência de qual era a solução já que, baixo o prisma daquele contexto, o escorbuto se devia a questões misteriosas relacionadas com maldições divinas, maldições do inimigo (algo curioso porque o escorbuto afectava a todos por igual), a alteração dos humores corporales (sangue, flema, bilis amarela e bilis negra), o hacinamiento, a falta de aireación e de higiene numas embarcações atestadas de marinheiros, e inclusive à holgazanería.

Apesar de toda a literatura ao respeito e de considerar que em meados do S. XVIII, James Lind, um médico escocês, achou a cura para o escorbuto (que não a causa última, a falta de vitamina C), o verdadeiro é que não foi até bem entrado o S. XIX quando se lhe pôs travão a esta doença de tintes epidémicos. "Tintes", mas não epidémica porque o escorbuto não é contagioso.

Genealogia breve do escorbuto moderno

Na Idade Contemporânea, desde o S. XIX até nossos dias podem-se distinguir três etapas no impacto do escorbuto:

1. Drástica redução depois da Segunda Guerra Mundial (1950-1980)

Em 1928 isolou-se e determinou a actividade antiescorbútica do ácido ascórbico, substância que depois se classificou como vitamina C. A partir desta meta e graças à melhora na disponibilidade de frutas e verduras frescas, a fortificação de alimentos e uma maior consciência sobre a importância das vitaminas, o escorbuto deixou de ser um problema significativo na população geral. A industrialização da produção e distribuição de alimentos permitiu um acesso mais constante a fontes de vitamina C e a educação nutricional promoveu dietas mais equilibradas. Nesta etapa, o escorbuto considerava-se praticamente erradicado em países como EUA, Reino Unido ou Espanha, salvo em casos isolados de malnutrición severa.

2. Resurgimiento em grupos vulneráveis (1980-2010)

Ainda que o escorbuto seguiu sendo raro, diversos estudos começaram a detectar um repunte em certos grupos de risco, devido também ao crescimento do consumo de alimentos ultraprocesados e de dietas baseadas em comida rápida que supuseram uma redução da ingestão de frutas e verduras em alguns sectores. Não se deve esquecer o caso de algumas doenças como o alcoholismo crónico, a anorexia nervosa e aquelas que cursan com síndromes malabsortivos que também estão relacionadas com a deficiência de vitamina C. Bem como casos isolados documentados em adultos maiores em residências com dietas deficientes e em pessoas com pobreza extrema.

3. Novos casos em contextos de dietas extremas e pobreza (2010-presente)

Na última década, reportaram-se um incremento relativamente significativo de brotes de escorbuto em países desenvolvidos, associados a dietas de exclusão extremas, como algumas versões radicais da dieta paleo, carnívora e macrobiótica, bem como a dietas extremamente restritivas por transtornos alimentares. Se tivesse que apostar sobre o contexto do caso recentemente reportado em Espanha, acho que seria por aqui por onde iriam os tiros. Também não temos de esquecer os casos de pobreza e crises económicas, que têm reduzido o acesso a alimentos frescos em coletivos mais desfavorecidos.

A carência de vitamina C como reflexo de outras deficiências

Na actualidade vivemos, sem lugar a dúvidas e em general, no melhor momento relacionado com a disponibilidade e segurança alimentar. No entanto, hoje mais que nunca se faz boa a frase de que "o ser humano é o único animal ao que há que lhe dizer como tem que comer". Isto é, contamos com um acesso inaudito a alimentos saudáveis e seguros, ao mesmo tempo em que também contamos com a maior disponibilidade da informação e, a pese a isso, a cada vez mais gente vive totalmente desnortada. Olho, não falo de quem não pode, me refiro a quem podendo o fazer bem, elege, pela causa que seja, o fazer mau. Não deixa de ser curioso.

Não te podes ir sem saber esta curiosidade sobre o escorbuto

Apesar de que a James Lind se lhe atribui a descoberta do remédio do escorbuto em meados do S. XVIII ao publicar em 1753 seus achados como médico no HMS Salisbury, no que tem sido definido como o primeiro ensaio clínico controlado da medicina, esta história é mais que questionável. Toma nota destes factos:

  • Já em 1579 o sevillano Agustín de Farfán, médico de Felipe II, já tinha proposto por escrito o uso de cítricos nas longas travesías marítimas como remédio para o escorbuto.
  • Também dantes, em 1616, a infausta Armada de socorro a Filipinas deixou dito que dantes de fazer à mar e com o motivo de afugentar o "mau de Loanda" (escorbuto) deviam se embarcar certa quantidade de zumo de limão (preservado com azeite de oliva).
  • Ainda após 1753 a marinha britânica seguiu padecendo os açoites do escorbuto pela singela razão de que os escritos de Lind não calaram nem convenceram a os, então, retrógrados propostas médicas.
  • Tanto é de modo que inclusive o próprio Lind, pela razão que fosse (fama, reconhecimento, aceitação?), terminou renegando de suas descobertas e, em sucessivos trabalhos sobre o escorbuto, desestimó a evidência sobre eles pela considerar infundada e anecdótica.

Seja como for, assegura-te de que tua alimentação inclua uma boa quantidade diária de alimentos vegetais frescos, prescindiendo de dietas estritas e, por suposto, dos malditos ultraprocesados.

Bibliografia imprescindível: Ruiz García V. Espanhóis contra o escorbuto: Empirismo, ciência e tecnologia dos alimentos ao serviço das grandes travesías oceánicas da Idade Moderna. Jaén: Universidade de Jaén; 2022.