A soja e seus derivados são amigos ou inimigos?

França tem movido ficha na contramão da presença da soja e seus derivados nos comedores coletivos. A razão: certos elementos da soja poderiam resultar nocivos para a saúde. Neste artigo reflexiona-se sobre o alcance desta decisão

O consultor dietista-nutricionista Juan Revenga e os alimentos diferentes, não os suplementos / Fotomontagem CONSUMIDOR GLOBAL
O consultor dietista-nutricionista Juan Revenga e os alimentos diferentes, não os suplementos / Fotomontagem CONSUMIDOR GLOBAL

Fazia tempo que não anunciava que, para a publicação de um artigo, me pertrechaba de protecções, capacete, coderas, luvas, protetor bucal e, por suposto, coquilla, já que alguns, no culmen de seu anti-deportividad, costumam atacar directamente aí, à bissetriz. Sim, o ser dietista-nutricionista e divulgador neste país deveria ser considerado uma profissão de risco. Vamos lá.

Que tem passado no França com a soja e seus derivados?

A princípios do mês de abril de 2025, a Agência Nacional de Segurança e Saúde Alimentar, Ambiental e Trabalhista francesa (ANSES) publicou um relatório sobre a segurança alimentar vinculada ao consumo de soja e seus derivados. O mais destacado do ditame, ou ao menos o que mais repercussões práticas pode ter, consiste na recomendação às autoridades sanitárias do país de não oferecer tantos produtos a base de soja na restauração coletiva e
para todos os grupos de idade. Isto é, solicita-se acabar com as bebidas ("leite") de soja, o tofu, os "yogures" e as bolachas com este ingrediente como protagonista, em meios que vão desde os comedores de preescolar até as residências de pessoas maiores, passando por o
resto de comedores escoares e de empresa.

ANSES tem sido a primeira administração sanitária pública, ao menos em Europa e provavelmente também em todo mundo, em abrir a caixa dos trovões e lhe pôr uma marca negativa, ou quando menos de advertência, à soja e seus derivados.

O motivo são as isoflavonas

As isoflavonas são compostos que estão naturalmente presentes nos vegetais. Sua existência não deriva de uma contaminação nem é um elemento gerado ou adicionado na produção ou tratamento dos alimentos. E resulta que a soja e seus derivados são, com muitíssima diferença sobre o resto de alimentos, as principais fontes dietéticas de isoflavonas. As substâncias vegetais com estas características recebem o nome de fitoestrógenos porque sua estrutura é similar à dos estrógenos.

Por sua vez, os estrógenos são hormonas sexuais que desempenham diversas funções no organismo, relacionadas com o desenvolvimento puberal, o ciclo menstrual, a gravidez e a saúde óssea. Assim, como as isoflavonas compartilham uma estrutura similar aos estrógenos, as primeiras podem influir nas mesmas funções que o fazem as segundas. Desta forma, um excesso de isoflavonas na dieta pode tanto aumentar como bloquear o efeito dos estrógenos.

Neste contexto, o relatório francês tem sido o primeiro em estabelecer um limite para a presença de isoflavonas na dieta. Digamos que se fixou uma fronteira de segurança que indique quantas isoflavonas poder-se-iam chegar a incluir sem que estas alterem a saúde. Essa dose, segundo ANSES, é 0,02 mg de isoflavonas/kg de importância corporal na população geral e 0,01 mg/kg em populações especialmente sensíveis (meninos que não tenham atingido a pubertad e
mulheres em idade fértil, estejam ou não grávidas).

O princípio de precaução na União Européia

Se há algo que distingue aos países da UE em questões relativas à segurança alimentar, é que suas recomendações e advertências estão baseadas no princípio de precaução, de forma que se adianta aos possíveis riscos e, sem a necessidade de que estes se tenham materializado, propõe limites, regula e faz recomendações para gerar um meio com uns altos regulares de segurança. Quiçá os mais altos do mundo. Em sentido contrário, nos Estados Unidos regem-se mais pelo princípio de prova do dano: há que provar que algo é daninho e perigoso para legislar em relação a seu uso. Por exemplo, na UE o uso de pesticidas, hormonas, antibióticos, transgénicos e o próprio etiquetado é bem mais garantista (de segurança para os consumidores) que nos EE. UU., onde se segue uma política mais liberal.

Isto, no terreno da soja, as isoflavonas e França, se traduz em que, neste país, sua administração sanitária tem percebido um possível risco no consumo desta classe de alimentos por parte de seus cidadãos. E é que, em base aos dados extraídos das encuestas alimentares, existe uma quantidade significativa de franceses que consome esta classe de produtos a base de soja que supera os limites estabelecidos. Mais especificamente, o 76% dos meninos
de 3 a 5 anos, o 53% das meninas entre 11 e 17 anos, e o 47% dos homens e mulheres de 18 anos ou mais. Daí, as recomendações de limitar seu acesso.

O relatório não valoriza os possíveis benefícios do consumo de soja

Na linha do já comentado, na UE as avaliações dos possíveis riscos associados ao consumo de um alimento e dos possíveis benefícios realizam-se de forma independente. Isto é, o relatório de ANSES não considera em nenhum momento falar dos benefícios de incluir soja e seus derivados na dieta. No entanto, existe um importante volume de literatura científica que põe em valor a inclusão desta classe de alimentos. Por exemplo, se alguma
administração sanitária da UE realizasse um relatório sobre a capacidade alergénica dos cacahuetes e o perigo (inclusive mortal) que supõe seu consumo por pessoas susceptíveis, é muito pouco provável que no mesmo relatório se mencionem os efeitos positivos de incluir cacahuetes na dieta da população geral.

Ao final, incluir soja na dieta, é bom ou mau?

Paracelso, pai da toxicología moderna (1493-1541), tem a resposta perfeita para esta pergunta, apesar de que, naqueles tempos, a soja não formava nem de longe parte das opções alimentares dos europeus. Também progresso que, é provável, que a resposta não gostes. Paracelso afirmava (e tem-se por uma sentença verdadeira) que: "Nada é veneno, tudo é veneno. A dose faz o veneno."

Apesar do revuelo que geram certos titulares e certos relatórios, a cada dia tenho mais claro que o que comemos e o que deixamos de comer é, antes de mais nada, um acto político. Terminam sendo decisões que nos definem e posicionam em muitos outros âmbitos. Assim, quando vêm à tona notícias coincidentes com nossas eleições, estas servem para nos reafirmar, se lhes dá visibilidade e se compartilham. O contrário sucede quando o titular é contrário a ditas eleições. O soja-sim em frente ao soja-não não é mais que outro exemplo que põe de relevo a polarización intrínseca na que vivemos em praticamente todas as facetas de nossa vida. Neste caso, acho que ninguém se chame a engano: o que enfrenta a vegetarianos e omnívoros, respectivamente. Ou, mais radical ainda, o que enfrenta a animalistas e carnívoros.

A este tema da soja sucede-lhe um pouco o que a outros debates alimentares: os ovos, o leite, a carne, a fruta, etcétera. Se esta civilização durasse 200 anos (coisa que, ao ritmo que vamos, poderia ser duvidoso), estou seguro de que estes temas seguiriam gerando acendidos debates, contando para então com milhares de estudos científicos (a cada um com os seus) que seguirão sendo arrojados à cara de seus contrários.

De modo que, relativo a todos estes debates alimentares, faz favor, um poquito de faz favor.