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O caos da Ticketmaster ao vincular a entrada ao telemóvel: "Comprei eu, mas o acesso o tem meu ex"

As políticas rigorosas da plataforma de venda de bilhetes criam um cenário em que a compra não garante a utilização pessoal ou a possibilidade de a ceder a terceiros.

Ana Carrasco González

Acesso a um concerto com bilhetes comprados no Ticketmaster / Eva Manhart - EP

Nacho J. decidiu oferecer à sua companheira uma entrada para o concerto de Kendrick Lamar e SZA, previsto para 30 de julho de 2025 no Estádio Olímpico de Barcelona. Era um plano a dois, traçado com precisão, pensado para dançar como se o tempo não existisse, para não se soltar a mão, convencidos (ou querendo se convencer) de que o amor ainda podia resistir tudo.

Mas o amor, que tantas vezes nos escapa quando pensamos que o temos garantido, não sobreviveu. E o que era para ser uma memória tornou-se em duas entradas órfãs, presos no sistema Ticketmaster, que não entende separações, nem duelos, nem promessas quebradas.

O telemóvel vinculado é o do ex

Após o fim da relação, a ex-parceira bloqueou-o completamente. Não consegue comunicar com ele, nem por telefonemas nem por mensagens. Os bilhetes que o próprio Nacho comprou - num total de 217 euros - estavam ligados ao telemóvel da ex e ainda lá estão. Nacho não tem acesso ao aparelho nem à conta associada. Não pode utilizá-los, transferi-los ou vendê-los. 

Captura das entradas de Nacho J. / CEDIDA

Embora tenha sido Nacho a pagá-las, já não pode dispor delas. Na prática, já não são dele. "Estão ligados ao número de telemóvel dela e eu não posso utilizar os bilhetes. Neste caso, quero vendê-los, porque foi um presente, mas ela já não os quer e não os vai usar porque não vive em Espanha", queixa-se o utilizador à Consumidor Global. 

As condições da Ticketmaster

A factura é clara. Duas entradas. 217 euros. Pagamento imediato. Entrega digital "só mediante telemóvel". Ticketmaster estabelece-o como parte da sua política contra a fraude, a duplicação ou a revenda indiscriminada. Mas o que não explica de forma tão transparente é que, inclusive em situações pessoais como rupturas, doenças, mudanças de número, falecimento, o mesmo comprador poderia ficar sem uso nem acesso a algo que já pagou.

Nacho tentou contactar a plataforma de venda de bilhetes. Mas, tal como muitos outros consumidores, recebeu respostas automáticas e pouco atenciosas. "Que nada pode ser feito. Que os bilhetes estão atribuídos ao telemóvel e não podem ser alterados", diz. "Mas eu paguei por eles, como é possível que já não os possa dar ou utilizar? Ele não está sozinho.

"Não é um serviço, é uma armadilha"

Histórias semelhantes se repetem em fóruns, redes sociais e plataformas de denúncia. O caso de Perico Torres, por exemplo, acumula várias respostas de outras pessoas afectadas. Ele comprou cinco ingressos para um show do El Último de la Fila, marcado para 2026. Alguns eram para dar de presente. Mas o sistema Ticketmaster só os associa ao seu telemóvel. Ele não vai poder ir, por isso os bilhetes são inúteis. 

“Os bilhetes aparecem na minha conta Ticketmaster, mas não podem ser transferidos e indica que para entrar no concerto terá de ser feito a partir do meu telemóvel, o que não será possível porque não poderei ir”, explica Torres. A imposição de que o comprador original deve estar presente e aceder a partir do seu próprio dispositivo móvel, mesmo que os bilhetes tenham sido comprados como oferta, gerou um profundo mal-estar. "O que acontece se eu morrer, se cancelar o meu número, se o meu telemóvel avariar dois dias antes do evento? “Isto não é um serviço, é uma armadilha”, argumenta.

Abuso legal ou simples inovação mal gerida?

“Tudo isto enquanto se cobra 10% de cada bilhete como taxa de gestão... É um monte de tretas, como disse aquele tipo...”, diz Torres.

“Penso que se trata de um abuso completo e, por isso, penso que deve ser denunciado”, afirma, encorajando outras pessoas afectadas a seguir o seu exemplo e a denunciar o que considera ser uma “situação de total falta de proteção” contra empresas “usurárias”. Mas será que o que a Ticketmaster está a fazer é legal ou é um abuso?

O que diz a lei

“Por um lado, o Real Decreto 2816/1982, que regula os espectáculos públicos, proíbe a venda ambulante e a revenda de bilhetes, o que poderia sugerir que a vinculação do bilhete a um comprador específico é uma medida legal”, explica o advogado Jesús P. López, diretor do escritório Abogado Amigo. No entanto, esclarece que “o que está em causa não é a revenda especulativa, mas a transmissão de um direito já pago, sem fins lucrativos”. 

A entrada da Ticketmaster

López reconhece que pode haver uma justificação para dificultar a revenda online, mas adverte que essa justificação desaparece se o comprador apenas pretender oferecer o bilhete, dá-lo de presente ou permitir que outra pessoa assista no seu lugar. "Se essa troca não é proibida - porque não se trata de uma revenda propriamente dita - então há que perguntar se é lícito restringi-la. E a resposta é não: uma cláusula que limita os direitos do consumidor sem base legal é abusiva. Além disso, recorda que a recente Lei dos Serviços Digitais da UE não impede a mudança de propriedade dos bilhetes, mesmo no caso de bilhetes nominativos. 

E o que diz a Ticketmaster

A Consumidor Global pôs-se em contacto com a Ticketmaster para conhecer a sua postura oficial a respeito.

“Embora a Ticketmaster forneça a tecnologia para suportar a transferência de bilhetes, todas as políticas de emissão de bilhetes, mesmo que a transferência esteja activada, são determinadas pelo organizador do evento”, limitou-se a responder a plataforma.

Comunicação estratégica

Para esclarecer estas práticas, a Consumidor Global consultou Luis M. Romero-Rodríguez, professor e investigador especializado em comunicação estratégica. O especialista alerta que “uma cláusula que limita tão estritamente o uso de um bem adquirido, como os ingressos para um evento, vinculando-o a um dispositivo ou titular específico, sem possibilidade de mudança ou cessão, pode ser considerada abusiva se causar um desequilíbrio significativo nos direitos e obrigações do contrato, prejudicando o consumidor”. 

No entanto, Romero-Rodriguez salienta também que as empresas podem argumentar que estas políticas visam combater a fraude, a duplicação de bilhetes, a revenda indiscriminada ou a contrafação. No entanto, sublinha que, em casos específicos, e para proteger a sua reputação, a empresa deve oferecer alternativas razoáveis, como a mudança de propriedade ou mecanismos de transferência.

Como reclamar?

Romero-Rodríguez aponta duas vias principais de reclamação para os consumidores. A primeira é a administrativa, através dos Gabinetes Municipais ou Regionais de Informação ao Consumidor (OMIC) ou através da plataforma europeia de resolução extrajudicial de litígios em linha (RLL), no caso de compras efectuadas através da Internet. A segunda é a via judicial cível, que permite ao comprador demandar a nulidade da cláusula abusiva e exigir a restituição ou a reparação adequada, como o direito de transferir o bilhete ou de reaver o valor pago.

Além disso, o perito salienta a possibilidade de as associações de consumidores, como a Organização de Consumidores e Utilizadores (OCU), intentarem acções colectivas de injunção para anular este tipo de cláusula em todos os contratos da Ticketmaster, o que considera ser a forma mais adequada de proteger os direitos dos consumidores a longo prazo.