Viagem ao coração do eurofan depois do adeus de Espanha a Eurovisión: "Sento-me órfã"
A retirada de nosso país no festival de música, secundada por Irlanda e Países Baixos, abre um cisma inédito no certamen mais seguido de Europa
O próximo 16 de maio, pela primeira vez em décadas, Espanha não participará em Eurovisión. É um plante ao que se somaram as delegações de Irlanda e Países Baixos, e ao que apontam também sócios como Eslovénia. A decisão tem sido motivada a negativa da União Européia de Radiodifusão (UER) a vetar a participação de Israel no meio da escalada bélica
Para uma comunidade que vive o festival não como um programa de televisão, sina como uma liturgia anual, o "eurodrama" tem deixado passo a uma reflexão incómoda. Que ocorre quando a música deixa de amansar às feras e se converte num instrumento de blanqueamiento político? Isto é o que opinam quem mais sabem do tema.
Um adeus que sairá caro
Alba Giraldo, jornalista experiente no certamen e voz autorizada no cubrimiento do Benidorm Fest, analisa esta decisão. "A mim me parece bem, é o mais coerente", declara a Consumidor Global. Giraldo recorda que a postura da pública era clara desde setembro: se Israel participava, Espanha não. "Têm posto uns limites para dizer que Eurovisión não é política, ainda que o é, e o vimos nas últimas edições".
Espanha retira-se de Eurovisión 2026 depois da decisão da UER de permitir a participação de Israelhttps://t.co/mjrntc6igf
— RTVE Notícias (@rtvenoticias) December 4, 2025
No entanto, Eurovisión é o evento não desportivo mais visto do planeta. Ao apagar-se os focos para Espanha, apaga-se também um motor económico e social. "Estão a pôr em risco todo o fenómeno, as festas, a audiência milionária", explica a experiente. O Benidorm Fest, a jóia da coroa que reconcilió a Espanha com o festival, fica ferido de gravidade. "Ao não ter nada em jogo, não gerar-se-á esse debate social. Não acho que tenha a mesma repercussão nem mova o turismo internacional de outros anos".
"Fiquei-me órfã"
Para além das cifras, está o sentimento. O eurofan espanhol define-se por uma fidelidade quase religiosa, capaz de suportar décadas de más pontuações. Mas neste ano, o silêncio dói de outra maneira. Marina Barragán resume o sentir de muitos: "Fiquei-me órfã". Para ela, que cresceu vendo o festival e que situa seu clímax emocional na actuação de Rosa López ("quando Espanha voltou a crer"), a decisão é acertada, mas dolorosa. "Se quero-o ver, ter-me-ei que procurar a vida porque TVE não o vai retransmitir", lamenta, reconhecendo que a UER foi "muito rápida ao expulsar a Rússia", mas tem falhado agora.
Essa dupla vara de medir é o argumento que vertebra a indignação de veteranos como Antonio Vargas. Para ele, Eurovisión é, antes de mais nada, um projecto de paz nascido das cinzas da Segunda Guerra Mundial. "Criou-se para uma hermandad, para não repetir barbaridades", evoca. Vargas denuncia que a UER tem permitido a Israel se saltar "inumeráveis vezes as normas do concurso, aparte de do genocídio que estão a cometer. "Parece-me péssimo. Têm eliminado a países com longa trajectória no concurso (Espanha, Irlanda, Eslovénia e Países Baixos)", critica.
Uma viagem a Viena incomodado
O dilema moral materializa-se de forma cruenta na história de Miguel Ángel Marín. Ele já tinha os bilhetes de avião e o hotel reservado para Viena, onde celebrar-se-á Eurovisión 2026. Ia ser sua grande festa. Agora, será uma testemunha mudo na arquibancada.
"Sento-me incomodado, claro", admite Marín. "Mas considero que a causa palestiniana tem que ser prioritária dantes que meus próprios interesses". Seu depoimento reflete a maturidade de uma audiência que tem decidido antepor os direitos humanos ao espectáculo. O eurofan viajará a Áustria, sim, mas sua presença terá outro cariz: "Levarei minha bandeira de Espanha com orgulho, ainda que não participemos. Sentir-me-ei orgulhoso de estar no lado bom da história".
A pressão aplaudida de Espanha
Entre as reacções, também há quem lê a jogada de RTVE como uma estratégia mestre de pressão internacional. Nuria Gómez celebra que Espanha tenha sido um incordio para a organização até o final: "Parece-me bem que Espanha tenha dado por cu até o último momento", afirma com contundência, sugerindo que a corrente pública forçou a situação para tentar expulsar a Israel, ainda que o custo seja perder "mais de 20 milhões de espectadores".

Outros, como Andrea Muñoz, acham que o plante chega tarde –"deveríamos o ter feito no ano passado"-- mas se aferran ao que fica: o Benidorm Fest como consolo local, despojado de seu prêmio gordo, mas vivo.
Um futuro muito incerto para Espanha nos próximos festivais de Eurovisión
A incerteza é total. Como recorda Giraldo, Itália se retirou durante anos e voltou triunfal. Agora, Espanha se enfrenta agora a uma travesía pelo deserto cuja duração ninguém se atreve a pronosticar. Giraldo avisa: "Se em dois anos Israel segue e Espanha volta, será muito complicado de justificar".
Por enquanto, o 2026 passará à história como no ano em que a música calou pára que falasse a consciência. Ou como sentença Alejandro Duarte, resumindo o sentir de um país que tem decidido baixar do palco para não desafinar ante a história: "Estamos no lado bom".

