Existe uma teoria que sustenta que o termo Black Friday não surgiu nos departamentos de marketing, sina nas delegacias de polícia de Filadelfia durante a década de 1950. Os agentes começaram a usar este código para descrever o pesadelo de tráfico e multidões que colapsaba a cidade no dia após Acção de Graças –que se celebra na quarta quinta-feira de novembro em Estados Unidos–. Com o tempo, a expressão se popularizó e terminou adoptando-se comercialmente. No entanto, setenta anos depois, já não só satura as ruas, sina também nossos próprios cérebros.
Hoje, o Black Friday trasciende a economia para adentrarse na neuroquímica. É um palco onde a dopamina toma o comando, silenciando a prudência do córtex pré-frontal. Para entender como distinguir uma oportunidade real de uma armadilha emocional e por que, com frequência, a "resaca" do comprador dói mais que a despesa mesma, Consumidor Global conversa com Marta Martín, psicóloga e responsável pelo área clínica em Alan Espanha.
--Quando vemos uma oferta com um desconto de 70% e um temporizador em contagem regressiva, que ocorre exactamente em nosso cérebro?
--Quando nos expomos a estes sinais de urgência –essa mensagem de "tens que actuar já"--, se produz uma hiperactivación da amígdala. É nossa parte mais emocional e impulsiva a que toma o comando e nos empurra à acção. Simultaneamente, nosso córtex pré-frontal, que actua como nosso travão racional, reduz sua actividade. Perdemos esse filtro de controle.
--É a dopamina a verdadeira protagonista que nos empurra a procurar essa "recompensa" imediata, anulando nossa capacidade de reflexão?
--Nesse processo liberta-se dopamina, o neurotransmisor chave nos mecanismos de recompensa. Mas há um matiz importante: o que procura o cérebro é a satisfação do achado, da "ganga", do desconto em si mesmo, e não tanto a satisfação que dar-nos-á o produto. É a caça da oportunidade o que nos estimula.
--Com frequência pensamos que tomamos decisões racionais ("é uma boa poupança"), mas o ambiente do Black Friday parece desenhado para o contrário. Até que ponto nossa parte emocional "sequestra" à parte lógica e de planejamento durante estes bicos de consumo?
--Efectivamente, a parte emocional está totalmente vinculada ao processo de consumo atual. As campanhas de marketing estão desenhadas para gerar essa sobreestimulación que anula a lógica. Por isso costumo dizer que o Black Friday não se "joga" nessa mesma sexta-feira, sina que deve se gerir semanas dantes. Planificar antecipadamente que necessidades reais tens e fixar um orçamento máximo é a única forma de reactivar essa parte racional. Se fazemos esse trabalho prévio, teremos uma ferramenta para frear o impulso emocional quando chegue o aluvión de ofertas.
--Nas lojas on-line vemos constantemente "Ficam só 2 unidades" ou "A oferta acaba em x minutos". Desde um ponto de vista psicológico, que mecanismo é mais poderoso para anular o autocontrole: o medo a que se esgote ou o medo a que se acabe o tempo?
--Realmente não há um mais poderoso que o outro, porque costumam trabalhar em conjunto. Combinam-se a urgência temporária com a escassez artificial e o FOMO (Fear of Missing Out). Quando vês mensagens como "1.200 pessoas estão a ver este produto", se activam várias técnicas de neuromarketing ao mesmo tempo. É um bombardeio combinado desenhado para impactar no cérebro e acelerar a decisão.
--Falando do FOMO. Mais especificamente, que papel joga o medo a ficar fora? Como influem essa mensagem de "x pessoas estão a olhar este produto agora mesmo" em nossa decisão final de compra?
--O papel da validação social é fundamental. Essas mensagens normalizan compra-a. Se 1.200 pessoas querem-no, o raro é que eu não o compre. Se ademais nosso meio trabalhista ou de amizades fala disso, a pressão social valida a acção. O medo a ser o único que perde a oportunidade é um motor de compra muito potente.
--O simples facto de ver um preço original muito alto tachado ao lado do preço rebajado faz-nos perceber a oferta como valiosa, ainda que quiçá o atual siga sendo um preço elevado para esse produto? Como funciona esta âncora mental?
--Esse preço tachado gera uma sensação imediata de "ganga" que o cérebro valida automaticamente. Muitas vezes compramos o desconto, não o objeto. Para desactivar esta âncora mental, voltamos à necessidade de fazer os deveres dantes. Se tens monitorado o preço desse produto um mês dantes, no dia do Black Friday teu cérebro racional poderá dizer: "Não é uma oferta real, está ao mesmo preço ou mais caro". Saber a verdade protege teu bolso e tua mente.
--Como psicóloga, onde traça você a linha entre uma estratégia de marketing persuasiva e legítima, e uma prática manipuladora que explode deliberadamente nossas vulnerabilidades psicológicas?
--A linha vermelha está em dois pontos. Primeiro, na clareza das condições: não deve ter custos ocultos nem cláusulas enganosas, e a rebaja deve ser real, não um preço inflado previamente. O segundo ponto, e quiçá o mais delicado psicologicamente, é quando o marketing vincula o consumo ao bem-estar emocional. Mensagens que sugerem "compra isto para te sentir bem" ou "isto é o que te falta para ser feliz" são manipuladores. Validar que a solução a um mal-estar emocional é uma compra costuma derivar posteriormente em culpa, autocrítica e estrés financeiro.
--Ainda que todos somos susceptíveis, existe um perfil psicológico mais vulnerável a estas tácticas?
--Sim, há perfis mais vulneráveis. Pessoas que atravessam momentos vitais de muito estrés, ansiedade, estados depresivos ou que têm uma tendência innata à impulsividad, correm mais risco. Utiliza-se compra-a como um mecanismo de regulação emocional: compro para sentir-me bem. O problema é que, ao passar o efeito, um se sente mau, e a única ferramenta que conhece para voltar a se sentir bem é voltar a comprar. É um círculo vicioso muito difícil de romper.
--Em sua opinião, há risco de criar um ciclo de compras compulsivas que afecte seriamente à poupança pessoal ou inclusive ao bem-estar mental?
--Sem dúvida. Quando a compra se converte numa via de escape, pode cronificarse e gerar uma deterioração grave. Afecta à poupança, mas também leva a condutas de ocultação (mentir sobre o que gastamos) ou ao endividamento mediante créditos rápidos. O isolamento social e o conflito familiar costumam ser consequências diretas deste ciclo. Se nossos familiares, nossos casais ou nossos amigos não são conscientes, o ponto ao que podemos chegar pode ser muito complexo.
--Como sair de um círculo vicioso de compras compulsivas?
--O primeiro é reconhecer que pode ter um problema e entender que o está a provocar. Essa tomada de consciência –que às vezes é nosso próprio meio quem nos faz abrir os olhos– é o ponto de partida. Depois toca perguntar-se em que estado emocional estamos e por que procuramos na compra uma sensação de bem-estar. Desde aí, podemos trabalhar o que há detrás e criar alternativas de satisfação que não dependam de comprar. Também ajuda reduzir estímulos que disparam o impulso, como eliminar cartões guardados, desactivar a compra num clique ou limitar a exposição a ofertas.
--Chegados a este ponto, como posso distinguir entre uma compra emocional e uma racional?
--Há uns sinais muito claros de qual é uma compra emocional e qual é uma compra racional. A emocional sempre vai ser com ansiedade, com o coração súper acelerado e sem saber explicar por que o precisas. Simplesmente, o queres e está de rebajas e "és tonto por não o ter". A urgência é a armadilha. No entanto, a racional é quando podes esperar sem ansiedade, quando o compras com acalma e tens claro para que o precisas. Ademais, compra-a entra dentro de teu orçamento e, igualmente, comprá-lo-ias ainda que não estivesse de rebajas.
--Que ocorre psicologicamente após o Black Friday? Como gerimos a "resaca do comprador"? Por que esse subidón de dopamina ao clicar em "comprar" se transforma tão com frequência em culpa ou ansiedade dias depois?
--A dopamina oferece uma recompensa muito breve. Quando essa química baixa, nos encontramos com a realidade: uma despesa quiçá desnecessária e menos dinheiro na conta. Isto gera culpa. Ademais, o Black Friday já não é um evento isolado; encadeia-se com o Natal e as rebajas de janeiro. É um trimestre de alto risco. Em consulta sim notamos um aumento de visitas relacionadas com este descontrolo financeiro e emocional nos meses posteriores.
--A despesa média não deixa de subir (já ronda os 260 euros). Quando deixa esta conduta de ser um capricho pontual e começa a se perfilar como uma conduta compulsiva ou adictiva?
--O limite está na perda de controle. Quando a compra é a única fonte de gratificación, quando compras coisas que não sabias nem que existiam só pela sensação do momento, e quando essa satisfação é efémera –pois dura horas– e precisas a repetir constantemente para não te sentir mau, estamos ante uma conduta compulsiva.
--Está o Black Friday normalizando e alimentando um problema de saúde?
--Sim, o ambiente geral de excitação e a validação por parte de influencers e campanhas promovem a ideia de que precisas consumir para estar ao dia ou ser feliz. Perde-se a visão do consumo responsável e alimenta-se a impulsividad como norma social.
--Que sinais deve aprender a reconhecer um consumidor para identificar que está a ser manipulado psicologicamente?
--Devemos aprender a ler nosso corpo e nossas emoções. Uma compra emocional tem sintomas claros: urgência, ansiedade, o coração acelerado e uma incapacidade para explicar por que precisas isso agora mesmo. Em mudança, compra-a racional é tranquila. Podes esperar, entra em teu orçamento e, a chave: comprá-lo-ias igual se não estivesse rebajado. Se sentes-te triste, aburrido ou ansioso, não é momento de comprar.
--Desde a psicologia, que estratégias ou rotinas recomenda para não cair no impulso de Black Friday?
--Recomendo aplicar a regra das 24 horas: espera um dia. Se amanhã segues querendo-o e precisa-lo, adiante. Também funciona acrescentar atrito ao processo: apaga os dados de teu cartão do navegador e desactiva compra-a num clique. E, sobretudo, faz uma lista prévia e cinge-te a ela. Se sentes que a ansiedade te domina porque "se esgota", recorda que não é o último comboio. As ofertas sempre voltam. E, se finalmente tens comprado e arrependes-te de tê-lo comprado, não passa nada O devolve! Não te afundes na culpa.
--Para terminar com uma nota prática. Se tivesse uma mensagem para os leitores de Consumidor Global justo dantes do Black Friday, que dizer-lhes-ia para que tomem decisões mais conscientes?
--Dizer-lhes-ia que a melhor oferta é não comprar o que não precisas. O Black Friday deve-se planear semanas dantes; só assim, com os deveres feitos, se pode aproveitar realmente sem cair na armadilha da impulsividad.