Raúl Iglesias, o barquero de Coria do Rio: "Seguiremos enquanto faça falta"
Este coriano leva 27 anos transportando a jornaleros, tractoristas e trabalhadores de uma orla a outra do Guadalquivir, ante a ausência de uma ponte

Na garita da orla direita, um menino se aferraba ao quicio da porta. "Mamãe, que quero ir com papai", insistia, com um tozudo pranto. Afora, seu pai ajustava as amarras da barcaza que aquela noite faria guarda de passagem, levando a jornaleros e tractoristas de um lado a outro do Guadalquivir para se ganhar o pão. Corria 1987 e Raúl, com mal seis anos, já sabia que seu destino estava justo na metade do cauce, entre Coria do Rio e as localidades colindantes do extrarradio sevillano.
Aos oito anos, Raúl Iglesias já se escabullía na travesía para agazaparse como um polizón. Aos catorze, deixou a escola e tomou o relevo de seu pai, "porque a mim sempre gostei disto, desde garoto". Hoje, com 44 anos, é a segunda geração de uma estirpe que mantém vivo um oficio quase esquecido; o de barquero.
A Transfluvial, desde 1970
Coria do Rio sempre olhou ao Guadalquivir. Desde os tempos em que se chamava Qawra baixo domínio árabe, até a chegada de Hasekura Tsunenaga em 1614, que deixou o apellido Japão como herança, o município tem sido porto, passo e refúgio. Aqui recaló também Blas Infante, pai do andalucismo, e aqui segue batendo uma cultura marinera que sobrevive na barca de Raúl.

A barcaza, oficialmente telefonema Transfluvial, funciona desde 1970. "Meu pai era tractorista e costumava passar por aqui com o ónus de arroz. Foi dos primeiros, da segunda geração da Transfluvial", rememora o coriano. "Um dos barqueros, Francisco, lhe disse: 'Vem-te conosco'. Mas meu pai respondeu-lhe: 'Eu não, homem, estou a trabalhar em isto, não posso o deixar atirado'. Mas teve um problema com eles e, quando regressava, lhes disse: 'Eu me venho com vocês'. E assim foi como deixou os tractores", narra.

O rio como estrada
A apodada "barca de Coria" une ambas orlas em três minutos e evita aos condutores o rodeio de 25 quilómetros até a ponte do Centenário. "Aqui não há turismo, isto é para gente que trabalha", explica o barquero. "A meio dia, desde a uma até as quatro, temos tido a barca grande a topo e até duas barcas funcionando", aponta.

A tarifa é modesta: 1 euro o peatón, 2,70 euros um carro pequeno e 3,80 euros um grande. Para os clientes habituais há bonos com descontos de até o 33%. O serviço opera 363 dias ao ano, uma média de 14 horas diárias, com uma viagem a cada 12 minutos. E, em dias assinalados, a função engrandece-se ao transportar à Virgen do Carmen até Sevilla, servir de plataforma para podas na ribera ou aparecer em filmes como A ilha mínima.

Por que não há uma ponte?
O serviço de ferry tem sobrevivido a projectos de pontes, túneis e atalhos de engenharia que, por promessas incumpridas ou sobrecostes impossíveis, têm ficado em nada. A futura ponte atirantado da SE-40, com suas 70 metros de gálibo e seu custo milionário, poderia acabar reduzindo a demanda do ferry. Raúl sabe-o. "Isto seguirá enquanto faça falta. Mas aqui, a cada vez que dizem que vão fazer algo, depois param. Levamos ouvindo o da ponte e o túnel desde que eu era menino".

"Estavam a construir um túnel, mas este rio é muito antigo. A 21 metros não deixavam de se encontrar com humidade. Após escavar repetidamente, chegaram a um ponto no que o túnel era inviable", explica Iglesias. "Agora estão a baralhar a possibilidade outra vez de fazer a ponte. Com todo o dinheiro que têm investido no do túnel, agora têm que dar outra subvenção para o da ponte, e isso já, como está a coisa, não vai vir tão ligeiro", apostilla.
De geração a geração
Agora, Raúl não está só na Transfluvial. Seu filho de 27 anos acompanha-o na barcaza, com a mesma devoción que ele teve de menino e decidido a seguir seus passos. Não é uma casualidade que o filho de um barquero queira ser barquero.

O jovem representa, assim, a terceira geração de sua estirpe e o eslabão final de uma história familiar unida ao Guadalquivir. Ainda que o porvenir do ferry veja-se ameaçado por projectos de pontes e túneis que se dilatan no tempo, eles mantêm vivo um passo que une orlas.