À busca de um (quase) impossível: a máquina de 'vending' saudável
O Ministério de Consumo anuncia um Real Decreto no que garantir-se-á um mínimo de produtos saudáveis nas máquinas de 'vending' dos centros sanitários, será possível?
O Ministério de Direitos Sociais, Consumo e Agenda 2030 acaba de anunciar que o futuro Real Decreto sobre alimentação em hospitais e residências obrigará a que, no mínimo, o 80% dos produtos das máquinas de vending sejam "saudáveis". Na nota oficial citam-se exemplos: água, leite, fruta, frutos secos não fritados e baixos em sal, zumos de frutas, pães e sándwiches integrais, yogures sem açúcares, além de limitar a visibilidade de snacks ultraprocesados, bollería e bebidas azucaradas. Assim mesmo, no relativo às bebidas quentes (chás, cafés e demais) estas servir-se-ão sem açúcar por defeito; e se querem-se azucarar, o consumidor poderá escolher até um máximo de 5 gramas de açúcar, não mais.
Uma bonita foto, mas, é factível na realidade?
A proposta, sobre o papel, é impecable: hospitais e máquinas de vending livres de calorías vazias e convertidos num espaço coerente com a mensagem de saúde do lugar que ocupam. Mais ainda se temos em conta que o próprio ministério recorda que, segundo uma análise recente publicado em The Lancet e baseado em mais de uma centena de estudos, o consumo de ultraprocesados em Espanha se tem triplicado em duas décadas, passando de contribuir um 11% a um 32% da energia total da dieta; e que esta circunstância afecta de forma negativa à saúde dos consumidores. Mas a atual medida... é viável, pode-se levar a cabo de forma efetiva e, mais ainda, terá um impacto significativo na raiz do problema?
É necessário o vending num centro sanitário, não teria outras opções?
Dantes de começar a regular o vending, há uma questão que requer uma importante reflexão e que rara vez se propõe já que a damos por sentada: para valer precisamos tantas máquinas de vending nos centros sanitários? Digo-o porque faz quarenta anos a profusão deste tipo de máquinas era muito inferior e não consta que ninguém morresse de inanición numa sala de espera hospitalaria por não encontrar uma destas máquinas. O auge do vending não responde a uma necessidade fisiológica, sina a um modelo de consumo permanente e despersonalizado, onde uma máquina ocupa o lugar que dantes tinha uma cafeteria de gestão humana com horários razoáveis. Regular o conteúdo está bem; perguntar-se se faz sentido que a solução por defeito seja uma máquina de vending quiçá seria ainda melhor.
Quem determinará (e com que critério) as opções "saudáveis" nestas máquinas?
Não é nada fácil determinar que é um produto saudável ou pôr linhas vermelhas no açúcar, o edulcorante, o sal ou as gorduras saturadas das diferentes faixas de produtos. Que o água ou uma peça de fruta entrem na categoria de "saudável" não gera demasiado debate. Mas o próprio ministério adianta uma lista na que aparecem zonas cinzas: zumos de frutas (que se considera uma fonte de açúcares livres e, por tanto a limitar, segundo a OMS), sándwiches "integrais", yogures "sem açúcares"... Que converte em saudável a um sándwich: o tipo de pan, o recheado, o tamanho, o sal, todo o anterior ao mesmo tempo? Um yogur sem açúcar, mas com edulcorantes, sabores artificiais e colorantes, seguirá sendo "saudável" por Real Decreto? Sem um critério técnico concreto, o risco de colar muitos "falsos saudáveis" nesse 80% é algo mais que provável.
Aqui aparece uma palavra pouco mediática mas chave: os perfis de nutrientes. Espanha leva tempo trabalhando com modelos de perfis de nutrientes. Por exemplo, no rascunho de Real Decreto para regular a publicidade de alimentos dirigida a menores, que remete ao modelo da OMS (e que leva anos apanhando pó em alguma estantería). Se para decidir que se pode anunciar a um menino precisamos um perfil de nutrientes, parece razoável que para decidir que pode ocupar o 80% da vitrina de um hospital façamos algo parecido. Caso contrário, a fronteira entre "saudável" e "não saudável" acabará sendo mais política e comercial que científica.
Pode-se assumir economicamente um vending realmente saudável?
Este problema tem menos glamur, mas pesa bem mais que qualquer declaração de boas intenções: a viabilidade económica. Hoje muitas máquinas enchem-se de produtos ultraprocesados de larguísima duração: chocolatinas, bollería embalada, refrescos, snacks salgados. Não precisam corrente de frio e aguentam meses sem mermas. Assim, passar a uma oferta dominada por fruta fresca, bocadillos refrigerados, lacticínios e similares implica máquinas mais caras (refrigeradas sim ou sim), reposições mais frequentes e, sobretudo, muitas mais perdas quando a demanda não acompanha. Quem tenha trabalhado em restauração sabe-o bem: atirar uma caixa de maçãs pochas dói mais que atirar uma caixa de bolachas. Se o negócio não sai, o risco é que a máquina esteja meio vazia, que a fruta seja um decorado triste… ou que o operador faça todo o possível por que o 20% restante —os produtos menos saudáveis— siga sendo o mais atraente da oferta. Porque, não o esqueçamos, o decreto fala de percentagem de referências, não de percentagem de vendas: ainda que tenha oito produtos saudáveis e dois não saudáveis, nada impede que quase todos os pulsadores vão parar a esses dois.
A experiência também não convida ao optimismo. Não é a primeira vez que se tenta sanear o vending, já seja em meios sanitários ou infantis. Em várias comunidades autónomas já se aprovaram instruções e recomendações para que as máquinas ofereçam mais fruta, água e frutos secos. No entanto, relatórios recentes mostram que em muitos hospitais as expendedoras seguem dominadas por bollería, snacks e refrescos, e que a garrafa de água convive em clara minoria em frente a outras bebidas menos recomendáveis. Ademais, sem sistemas de supervisão e sanção reais, o risco de que o novo Real Decreto fique num bonito titular é considerável.
Cafés sem açúcar... ao menos em princípio
Outro ponto interessante deste Real Decreto é a intenção de servir, por defeito, as bebidas quentes sem açúcar, permitindo acrescentar um máximo de cinco gramas. É uma medida alinhada com a evidência sobre o eficaz de pequenos passos saudáveis: não se proíbe o açúcar, mas se faz que a opção mais singela seja a menos problemática. Mas o assunto é que este tipo de medidas funcionam muito bem em meios coerentes e muito mau quando todo o demais convida justo ao contrário.
Que o Ministério de Consumo se preocupe pelo tipo de alimentos que oferece um hospital é uma boa notícia, e que tente o blindar por Real Decreto, melhor ainda. A evidência sobre o impacto dos ultraprocesados na saúde e sobre a necessidade de meios alimentares mais saudáveis é abrumadora. Mas isso não deveria nos impedir ver as costuras da proposta: a indefinición de que é "saudável", a ausência (por agora) de um perfil de nutrientes específico para este uso, as dúvidas sobre a viabilidade económica de encher máquinas com produtos frescos e, sobretudo, a pergunta incómoda de fundo: quiçá o vending, por muito saudável que o vistamos, não é a melhor ferramenta para alimentar a ninguém… e menos num hospital.