Loading...

Ondina, a última charcutera de um mercado que se apaga: "Espero sobreviver até que me aposente"

Em Ciutat Meridiana, o bairro com a renda mais baixa de Barcelona, três postos resistem ao avanço dos supermercados, às mudanças demográficas e ao esquecimento

Ana Carrasco González

S 14

São as oito da manhã no mercado de Ciutat Meridiana, o bairro com a renda mais baixa de Barcelona. Os primeiros raios de sol entram pelo portalón e alumiam o interior. Ao entrar, a primeira sensação leva-te a imaginar o que foi, em lugar de apreciar o que fica. Mal três postos resistem: dois charcuterías e uma frutería.

No canto, localiza-se o bar de toda a vida, com seu telejornal acendido, copos de cristal para o café e a conversa pausada dos de sempre. No centro, há um posto de pescado que permanece vazio. Nos laterais, dezenas de persianas levam tempo baixadas, mas ainda conservam seus rótulos. Em general, há um ar de espera, de algo que foi bem mais.

De duas plantas a três postos

Ondina Monteiro, com seu delantal, devolve-me ao presente. A charcutera, de 62 anos, encontra-se depois de seu balcão enquanto acomoda umas peças. Sua irmã, Cristina, ajuda-lhe a repor a carne. "Parece mentira, mas este mercado teve em seu momento duas plantas", diz Ondina com um sorriso ao percatarse de meus cavilaciones.

Interior do mercado de Ciudat Meridiana / SIMÓN SÁNCHEZ

Custa imaginar dezenas de paradas abertas, duas plantas cheias de actividade, facas repicando, vozes misturadas, bichas intermináveis. Custa crer naquele bullicio que deu sentido ao edifício inaugurado em 1968 para abastecer aos bairros que brotavam em Nou Barris. "Quando cheguei a este mercado faz 17 anos, a esta hora já tinha bicha em minha parada", recorda Ondina. "Podíamos demorar uma hora em despachar a um cliente. Vinha gente de Torre Baró, de Vallbona, de Santa Elvira. A gente dos arredores do bairro vinha ao mercado". Hoje, já são as oito e meia da manhã, e ainda impera o silêncio.

Anatomía de um declive

O declive do mercado começou faz uns 15 anos, quando a Prefeitura de Barcelona clausurou a planta superior e abriu ali um supermercado Consum. Aquela decisão simbolizou a transformação do bairro e dos hábitos de compra. "Ninguém tem obrigado a ninguém a comprar num súper. A gente tem decidido", assinala Ondina.

 

"Influíram muitas coisas", reflexiona a charcutera, enquanto afia uma faca. A decadência acelerou-se com o boom imobiliário. "Pouco a pouco, o bairro foi-se esvaziando e ficaram os maiores, a freguesia fiel que sustentava o mercado com seus compras diárias, ainda que menguantes. Mas essas avós e senhoras fizeram-se muito maiores. Seus filhos vêm menos. Seus netos, para não molestar, vêm pouco. É a roda da vida", sentença.

A perda da pescadería

Neste momento, Cristobalina, uma das últimas vizinhas "de toda a vida" que compra a cada amanhã, entra com passo lento e se acerca. Conhece a Ondina e a sua família desde faz anos. "Conheço a Sheila –a sobrinha de Ondina– desde que era chiquitina, e olha-a agora com 28 anos em seu posto de frutas. Mas para mim segue sendo a menina do mercado", me diz sujeitando meu braço e achinando os olhos ao falar. Para a idosa, a maior ferida foi o fechamento da pescadería. "O pescado é o que dá vida a um mercado", suspira.

Cristobalina comprando / SIMÓN SÁNCHEZ

No ano passado tentou-se recuperar essa vida e reabriu-se a pescadería, fechada durante oito anos, mas teve uma vida fugaz. Não tem durado nem um ano aberta. Ainda assim, não têm faltado tentativas por salvar o mercado. Teve um primeiro resurgimiento com o translado de alguns negócios procedentes do antigo Mercado de Núria (situado no mesmo bairro e clausurado em 2018), como o bar que ainda resiste. E mais recentemente, o Instituto Municipal de Mercados de Barcelona (Immb) investiu mais de 200.000 euros em reformas.

A qualidade do produto com respeito a um supermercado

"A cada vez é mais difícil reflotar ao mercado", confessa Ondina. "Agora temos no bairro a uma comunidade islâmica muito grande que só compra em suas lojas halal. Ainda que eu tenha ternera halal, para eles a estou a contaminar porque curto porco", comenta. "E, por outro lado, a comunidade sudamericana procura preço, algo que nós não podemos oferecer a diário", acrescenta.

Ondina no mercado de Ciutat Meridiana / SIMÓN SÁNCHEZ

A decadência do mercado, no entanto, não tem erosionado a qualidade do produto nem a dedicação de quem o atendem. "Todo mundo sabe que a qualidade dos mercados não a tem nenhum supermercado. A mim me acabam de trazer o frango fresco, agora me trazem a ternera. É um produto que se matou faz dois dias, não está manipulado nem passa por câmaras durante semanas", recalca enquanto assinala o carrito cheio de frangos que traz um provedor neste instante. "A gente jovem valoriza-o quando prova um bom produto", explica.

A percepção da despesa num mercado

Ondina desmonta a percepção da despesa que alguns jovens têm sobre os mercados. "A gente chega ao súper e vê uma bandejita de pechugas por dois euros, mas não olham o preço por quilo. Se olhássemo-lo, veríamos que não há tanta diferença no preço", defende. "Um sobrecito de chorizo, um euro. Já, mas é que não tens olhado o preço por quilo. Estão-to cobrando a 12,50 ou a 13,50 euros. Igual que o vendo eu", acrescenta.

Ondina e sua sobrinha Sheila / SIMÓN SÁNCHEZ

O problema, admite, é que o mercado exige compras grandes e planificadas, enquanto o supermercado oferece inmediatez e pequenas doses. "Tenho clientes que se gastam 100 euros em carne e se levam comida para um mês. Mas o filho de uma cliente disse-me no outro dia que em sua vida se gastou 100 euros numa charcutería. Claro, porque compra bandejitas soltas, sem dar-se conta da despesa acumulada", realça.

O que mantém vivo ao mercado de Ciutat Meridiana

"A gente que segue vindo é, sobretudo, porque damos um serviço que não te vai dar nenhum supermercado. Se uma cliente pede-me a pechuga para rebozar e os muslitos para o ferro, fazes-lho a seu gosto", detalha Ondina sobre o valor do trato próximo e pessoal. "Eu não como nada congelado. Para mim é uma mordomia poder cenar um dia lombo, ao dia seguinte frango, sempre fresco. E isso só to dá o mercado", arguye.

O bar e a charcutería de María Álvarez / SIMÓN SÁNCHEZ

De repente, um senhor maior interrompe para pedir 250 gramas de presunto e médio quilo de costillas. Nesse momento, aproveito para olhar a meu arredor e dou-me conta de que, realmente, se o mercado de Ciutat Meridiana sobrevive, é graças a elas. Observo a Ondina, em seu posto, a sua irmã Cristina, a sua sobrinha Sheila, na frutería, e a María Álvarez, na outra charcutería. Inclusive o bar, regentado por María José López (conhecida por todas como Josefa), tem nome de mulher.

María aposenta-se

"Ainda que pareça que não, os mercados sempre os sustentaram as mulheres. Os homens iam a Mercabarna a comprar, mas quem vendiam eram elas. As mulheres decidiam que comprar, como vender e levavam o negócio", reivindica Ondina. Se for o caso, ela chegou a Barcelona desde Portugal com 10 anos, começou a trabalhar no mercado de Santa Caterina com 14 e tem passado por praças icónicas como a Boquería ou o Carmel. "Apanhei esta parada já com 50 anos, separada, com um filho, sozinha. Tinha que atirar adiante. E aqui estou. O sexo forte, se talvez, somos nós", diz.

Entrada ao mercado de Ciutat Meridiana e um cartaz do supermercado Consum/ SIMÓN SÁNCHEZ

Mas não tudo resiste ao passo do tempo. María, a outra charcutera, aposenta-se no ano que vem. Sua parada fechará com ela. "Quando María se vá, isto ficará ainda mais vazio. E eu não sê quanto aguentarei sozinha", confessa Ondina. "Espero sobreviver até que me aposente".

Sheila, a última aposta

Esse espírito empreendedor de Ondina parece tê-lo herdado sua sobrinha, Sheila Ferrer Monteiro, mãe de uma menina pequena, que tem tomado as riendas da frutería contígua em plena decadência do mercado. "Vou atirando, que já é muito. Para mim é uma oportunidade porque levo aqui desde garota, a freguesia me conhece e confia em mim", explica enquanto pesa umas maçãs.

"Este negócio exige sacrifício, pois requer madrugones e sábados intermináveis, mas vale a pena", reconhece Sheila. Para somar freguesia, oferece entregas a domicílio a pessoas maiores e gere as redes sociais de seu posto, inclusive desenhando os cartazes graças a sua formação em desenho gráfico. "Com as redes temos chegado a gente de outros bairros de Barcelona. Isso me anima". Ainda assim, é consciente da fragilidade do projecto. "Aos jovens dizer-lhes-ia que se animem, ainda que é um sacrifício enorme. O mercado precisa savia nova, porque se não o fazemos entre todos, se morre".

Um mercado que se resiste a se apagar

Ondina olha a sua sobrinha com orgulho. Sabe que o relevo generacional é a grande matéria pendente. "O trabalho do mercado não é atraente. Pinto-o bonito porque encanta-me, é minha vida. Mas aqui trabalha-se. Não tens pontes, não tens nesses dias livres que têm outros. É a parte que joga para atrás à gente", admite.

As mulheres do mercado de Ciutat Meridiana falam com a determinação de quem defende a última trinchera. Para Ondina, não é só uma luta por um negócio, é a resistência do autêntico em frente ao industrial, do trato próximo em frente ao anonimato. É, em definitiva, a luta por manter acendida uma luz no bairro que se resiste, como ela, a se apagar do tudo.