Janela ao passado: a Biblioteca Nacional exibe o Papiro de Ezequiel, sua jóia mais antiga

Trata-se de dez folios do século II.d.C. que saíram no final do XIX das areias de Egipto e se venderam por separado no mercado de antiguidades

Vista de la exposición
Vista de la exposición

​​​​​​Existe um contraste formoso e elocuente entre a solidez aparente da História, rotunda e solene, cheia de lições e episódios, mas ao mesmo tempo clara e transmisible, e a fragilidade das vidas que a escrevem. Esta delicadeza é ainda mais palpable nos papiros, janelas ao passado que têm sobrevivido ao passo dos séculos de maneira quase milagrosa e recolhem ideias que, em ocasiões, têm chegado a moldar o pensamento humano através de traços com tinta sobre uma fibra vegetal vulnerável ao fogo, ao água e a esmo.

Assim, a História pode às vezes se revelar como um conjunto de tramas, tecidas com fios mais ou menos ténues, que às vezes se rompem e outras vezes persistem. A Biblioteca Nacional de Espanha (BNE) mostra agora um sensacional produto deste entrelazar: o Papiro de Ezequiel, o documento mais antigo conservado pela instituição. Seus caracteres são legíveis, a escritura é elegante e cuidada e a mão que a levou a cabo não parece agora tão remota.

Um códice excepcionalmente conservado

Trata-se de um conjunto de dez folios de papiro escritos no século II d.C., procedentes de um códice (P967) excepcionalmente conservado que contém a tradução ao grego de vários livros da Biblia. Agora é um tesouro, mas em seu momento foi uma prova da inovação tecnológica, já que está numerado e escrito por ambas caras. Está, por tanto, próximo do que hoje entendemos como um livro.

Imagen promocional de la exposición / BIBLIOTECA NACIONAL
Imagem promocional da exposição / BIBLIOTECA NACIONAL

Estes espantosos folios (longos e estreitos, como os próprios juncos) se podem contemplar numa exposição gratuita que, até o 1 de novembro, percorre a história deste tesouro documentário, desde seu achado até a actualidade.

Avatares do papiro

A sala que acolhe a mostra é pequena e escura: tem algo de arca ou de sanctasanctórum que atrapa ao visitante (de facto, a BNE fala de "exposição inmersiva") e lhe faz se submergir nos avatares deste papiro, mas também reflexionar sobre as complexidades que enfrentam as instituições que lutam por sacar estes tesouros à luz mergulhando em arquivos.

Tal e como têm explicado aos meios as comisarias Raquel Martín e Sofía Torallas Tovar, o papiro tinha um total de 236 páginas. Hoje em dia conservam-se 200 diseminadas em diferentes instituições: a Biblioteca Chester Beatty de Dublín, a Colecção John H. Scheide de Princeton, a Kölner Papyrussammlung (Colónia) e a Colecção Rocha-Puig da Abadia de Montserrat, em Barcelona.

Sofía Torallas, una de las comisarias, durante la presentación de la exposición / BIBLIOTECA NACIONAL (X)
Sofía Torallas, uma das comisarias, durante a apresentação da exposição / BIBLIOTECA NACIONAL (X)

O papel do desenho

Graças à acertadísima proposta dos responsáveis pelo desenho da exposição (Rocamora Desenho e Arquitectura), o visitante pode percorrer a sala contemplando o anel composto pelas reproduções digitais da cada uma das páginas que se conservam do manuscrito nos diferentes lugares. Deste modo, o que um dia se separou, hoje volta a estar unido graças à tecnologia, e a História, fragmentaria e cheia de susurros, fala com uma voz mais clara e brilhante.

Não está claro como o Papiro de Ezequiel "foi sacado das areias de Egipto". Poderia ter sido no final do XIX, durante a exploração (A visita? O saque?) de uma necrópolis. O que sim é evidente é que, pouco depois, passou por muitas mãos: o manuscrito foi desarmado com o objectivo de obter mais dinheiro e as páginas venderam-se, por separado, no mercado de antiguidades a diversos coleccionistas.

Ramon Rocha-Puig

E falar de mercado de antiguidades implica falar de zonas cinzas, de supor, de suspeitar. De algum modo, o sacerdote e helenista Ramon Rocha-Puig, nascido em 1906 numa família catalã muito cristã, fez-se com um desses papiros. Em 1939 tinha-se especializado em papirología, e a partir daí começou sua busca, na que teria de dar com peças deste puzle milenario.

Aspecto de los papiros / JUANMA DEL OLMO
Aspecto dos papiros / JUANMA DO OLMO

"Com o firme propósito de adquirir uma colecção de papiros e estudar directamente os textos, já em 1952 o Dr. Rocha criou a «Fundação San Lucas Evangelista» com o fim de obter fundos e promover a aquisição e o estudo de documentos antigos. Não fica muito claro como desenvolveu este projecto. Em todo o caso, ele dedicou todos seus próprios recursos a este fim e algumas pessoas de Barcelona lhe ajudaram economicamente", pode se ler em Redes de Papiro. Montserrat e o coleccionismo no s. XX.

Aquisição das peças

Ao longo dos anos 50, o Dr. Rocha realizou várias viagens ao País do Nilo. "Ignoramos em muitos casos as circunstâncias de achado e aquisição das peças", indicam no mencionado texto. Afinal de contas, este é um relato sobre trazer à tona algo que permanecia na sombra e de contar com transparência como tem conseguido se fazer.

Ángel Rocamora, arquitecto e museógrafo, explica a perguntas deste meio que, nestes casos, o objectivo do desenho é traçar "discursos emotivos da história" com carácter científico, que devem funcionar tanto para o visitante mais especializado como para o lego. Sobre as condições e as exigências, indica que os conservadores da BNE, como não podia ser de outro modo, são muito estritos, já que o material não pode estar exposto mais de três meses e, ademais, deve estar numas condições de luz e temperatura muito específicas.

Una vista de la exposición / BIBLIOTECA NACIONAL (X)
Uma vista da exposição / BIBLIOTECA NACIONAL (X)

Fragmentos e ressonâncias

O edifício da Biblioteca Nacional tem muitas curiosidades. Uma delas é que alberga, na cara oposta, o Museu Arqueológico Nacional (MAN). Nestes dias, nesta instituição fraterniza, o visitante pode dar com uma exposição temporária do artista Bernardí Roig, quem tem escrito que o MAN é o templo do fragmento.

"Todos os objetos que alberga estão incompletos. Inclusive se um objeto está completo -ou completa-se- nunca se lhe tem acrescentado nada que não pudesse fazer parte dele. Neste caso, uma malha de ressonâncias, desbordamientos, ecos e atritos, que convida a olhar o Museu de outra maneira: um susurro ao passado, ténue mas insistente", escreve Roig. A vontade da BNE é antagónica: quer ser o mais exhaustiva possível na recopilación do património bibliográfico e documentário, mas o Papiro de Ezequiel permite entrever que os ecos, ainda que não sempre sejam nítidos, podem ser prodigiosos.