Marta Millà, autora do livro 'O azul impossível': "Não há cultura de morte em nossa sociedade"

Entrevistamos à actriz catalã, que acaba de publicar uma novela baseada em factos reais sobre a esclerosis lateral amiotrófica (ELA) e o amor, esse refúgio ao que voltar quando todo se desmorona

Marta Millà, autora del libro 'El azul imposible' CEDIDA
Marta Millà, autora del libro 'El azul imposible' CEDIDA

Falar das coisas importantes requer valentia. Escrever sobre elas

--Martina, a protagonista de seu livro, é uma actriz catalã de certa fama, mas passa momentos de penúria económica. Tão difícil é ganhar-se a vida no sector da interpretação?

--Há actores que começam a carreira e não trabalham, até que chega um momento em que um toma a decisão de se ganhar a vida de outra maneira. Mas quando trabalhas, quando si tens sorte e trabalhas e tens temporadas muito boas, então não procuras um plano B. E aí está o problema. Ainda que estejas a trabalhar, são contratos temporários. Sempre. No teatro e na televisão, a não ser que pilles um culebrón longo, são contratos temporários, e isso implica instabilidade, porque a cada mês há facturas por pagar. E se estás quatro meses sem trabalhar, pois imagina-te tu o lío… É precário neste sentido, e não é uma coisa de idade, a coisa não vai de edadismo, eu não compartilho essa mirada. Ainda que, obviamente, à medida que uma faz-se maior há menos papéis para mulheres.

--É chocante descobrir que uma pessoa que tem saído em séries de sucesso em TV3, que é famosa, passe momentos de dificuldade económica. Essa precariedade leva a Martina a aceitar a oferta de Jordi, pintor e coprotagonista, para posar como modelo.

--Sim, sim, mas é que é isto. Não se diz muito, mas é assim. Toda a gente jovem se procurou a vida de uma ou outra maneira, não?

--Todos temos sido multiempleados em alguma ocasião…

--Os jovens procuram outros trabalhos porque há que completar o salário para pagar o andar e a vida. E sim, há um montão de actrizes que fazem de modelo, que fazem classes, que fazem um montão de coisas. E agora, tal como está a moradia, pois já nem te conto. Vivendo do teatro vais justo. Ainda que tenhas fama. Segue sendo assim.

--Martina e Jordi conhecem-se no estudo dele, se apaixonam e aparece a maldita doença. O diagnóstico é um golpe duro, "a primeira descarga elétrica", como você o chama, e o primeiro que faz a protagonista é procurar em Google, algo tão típico hoje em dia e ao mesmo tempo um exercício de risco… Como o viveu você? Bom, ou Martina. Não sê como prefere falar, se em primeira pessoa ou em voz de Martina.

--Em primeira pessoa está bem, porque Martina sou eu. O primeiro contacto com o médico foi um choque. Por isso a mim não me parece mau que possamos nos meter em Google e saber em seguida as possibilidades que há. O problema é que não toda a informação é correta, mas também não encontrei nenhuma mentira em Google. Procurei doenças neurológicas, e, se não tens nem ideia, pois entras lá e te saem todas. Não sabia qual era a que afectava a Jordi, mas já vi a dimensão, vi que era uma coisa grave. Voltaria a entrar em Google? Claro que sim. Sempre tens que esperar ao diagnóstico do médico, mas quem aguenta dois meses?

--Também lhe queria perguntar por esse tempo de espera. A segurança social demorou dois meses em dar-lhe a primeira hora com o neurólogo. Suponho que essa espera deve de ser infernal quando não se tem nenhuma certeza, não?

--Sim. Sim, sim, sim. O não saber o que está a ocorrer, o ver que os médicos estão a observar, estão a fazer provas... Tu captas que está a ocorrer algo que não pinta bem. Em seguida sabes que algo passa e inicias toda essa busca à espera do diagnóstico. A cabeça avança-se, é algo lógico no ser humano, uma espécie de sobrevivência cognitiva de dizer: 'A ver, a ver, de que vai tudo isto?'. E a mente avança-se e projecta para adiante. Sim, eu acho que não saber o que ocorre é realmente o pior. Não saber que ocorre e depois o diagnóstico. Depois, um já vai entendendo e te vais adaptando, mas o primeiro é um choque. Ninguém se espera isto. E menos se não conhecias nem a doença. Estas doenças tão raras não estavam em mim, não estavam em meu campo de possibilidades, não existiam.

--O diagnóstico foi implacável. "Trata-se de uma doença neurodegenerativa. Não existe tratamento. Não tem cura". E após a primeira descarga elétrica, a esperar de novo. Três meses. Em 2025 tem evoluído algo? Sabe-se algo mais sobre a esclerosis lateral amiotrófica? Existe algum tratamento?

--Até dia de hoje, eu acho que o fundamental, que seria um tratamento, uma pastilla, alguma coisa que possa atrasar o avanço da doença, não tem mudado muito. Falta investigação para encontrar uma cura ou, ao menos, algo que atrase o avanço para que o doente possa durar muitos anos, como sucede com a esclerosis múltipla. A ELA, em mudança, é fulminante e não há avanços. No sentido social, há mais consciência de que é uma doença muito cara, de que a administração tem que pôr dinheiro porque é cara. Uma cadeira de rodas básica, a típica que te põem da segurança social, é grátis. Mas uma cadeira de rodas elétrica para poder mover com certa comodidade vale entre 6.000 e 7.000 euros. Quem pode pagar 7.000 euros, além de toda a ajuda de cuidadores que precisas? Com o tema da exclusão das barreiras arquitectónicas dos andares e a instalação dos elevadores também há mais consciência, mas eu nos 15 anos que têm passado não tenho visto uma grande evolução. Está a falar-se mais, mas não vejo uma grande mudança.

--Você, que cuidou a seu marido até o último suspiro, quatro anos após o fatídico diagnóstico, que lição de vida poderia compartilhar conosco? Ao final, a vida vai um pouco disso, de cuidar à gente que um quer, não?

--Para mim, sim. Acho que há duas coisas básicas. Estar e viver em amor, que é um estado que não só tem que ver com o casal, sina com o acto de ser amoroso com a vida, com um mesmo, com os outros, com os animais, com as coisas, com os trabalhos. É algo fundamental. E depois, os que temos a sorte de viver num lugar onde não há bombas, temos que ser conscientes do privilegiados que somos e tentar nos realizar e ser felizes. A mordomia de estar aqui, de viver em paz, ainda que tenha muitos problemas que requerem de solidariedade, mesmo assim, temos que desfrutar da vida que temos. Quando convives com uma doença assim, quando passas um momento assim de duro, aprendes a viver bem.

--Realmente escapou-se no meio de uma função de teatro na que interpretava a Madame Diderot, apanhou a moto e foi até casa para lhe dizer que lhe queria em seu último dia de Natal?

--Quando o recordo, me parece irreal. 'Isso fizeste? Estavas louca?'. Sim, estava louca de amor e fiz-o. E depois propus-me se contá-lo ou não, porque pensei: 'Homem, igual não me chamam nunca mais'. Não, não creio. É uma cena de filme.

--É um dos momentos mais emotivos do livro.

--Sim. Agora, com os anos, penso que estava louca, mas que loucura mais bonita, não?

--Por que dá tanto medo a morte?

--Porque não há cultura de morte em nossa sociedade. Dantes, quando nossos avôs, sim que tinha uma cultura de morte como em sociedades orientais, que também têm à morte mais visível, mais clara. Vivemos numa sociedade Ocidental, capitalista, na que temos deixado de lado a espiritualidad. Não falamos da morte. É uma sociedade de rendimento, de triunfo, de sucesso, narcisista, hedonista, superficial, e, se estamos todo o dia aí, pois não aceitamos que isto se acaba, não aceitamos a dor, não aceitamos, a perda, não aceitamos nem sequer a tristeza, a nostalgia. Não, a negamos. E então, como negamos toda esta parte, como negamos todas as cores mais tristes da vida, mais profundos, pois temos terror a isso e não nos familiarizamos com isso. Onde nos metemos? Numa sociedade na que se esconde a morte, se esconde o feio. Temos todo o momento brilho, alegria e olé, e estamos muito bem, mas a vida tem outra cara, também, e a negar é absurdo porque cria um monstro aí detrás. A morte é algo natural. Não apetece, mas é natural.

--Se toda a beleza que há nas coisas, na arte, nas sensações, nas amizades, na vida humana, é efémera. Se sabemos que tudo tem um princípio e um final. Viver o momento, centrar-se no agora e desfrutar das pequenas coisas à cada instante é de vital importância, não?

--Sim. Há um conto zen que gosto de muito e to vou a resumir. É um monge que está a pescar no rio e lhe apanha um ataque de ira, porque há um gato que lhe rouba o pescado. Então, apanha a espada e corta-lhe o pescoço ao gato. Depois, vai-se a casa e entra-lhe um enorme sentimento de culpa. 'Como tenho podido me deixar levar pela ira e fazer algo assim? Não mereço ser um monge. E vai ver-se a um maestro e diz-lhe: 'Maestro, estou obsedado com o do gato. Não sou uma boa pessoa. Não sou um bom budista'. E o maestro diz-lhe: 'Assim é. Tens toda a razão. Não és um bom monge. Tens que morrer'. E o homem diz-lhe: 'Sim você o diz, maestro, vou morrer. Não me mereço viver'. O monge senta-se e apanha a faca para fazer o harakiri e cortar-se o pescoço. 'Assim não sofrerás', lhe diz o maestro. 'Estás preparado?', pergunta-lhe o maestro. "Sim, maestro', responde o monge. Então, quando o monge começa a se pressionar o ventre com a faca, o maestro lhe diz: 'Pára! Pára! Pára! Ouves agora a culpa e os aullidos do gato?'. E o monge fica pensativo e diz: 'Não'. 'Bom, pois se já não os ouves, já não faz falta que morras', sentencia o maestro. É uma metáfora que explica que no aqui e no agora não há dor, não há neuras. Justo no momento presente há vida. Uma doença, se dá-te um termo de vida, empurra-te, é o haraquiri. Empurra-te ao aqui e agora, aqui e agora, amanhã não sei. Estamos vivos, ainda que não possas andar, ainda que não possas fazer um montão de coisas. Se tens amor e tens gente ao lado, a vida faz sentido. Mas tens que estar no aqui e agora, porque se te adiantas ao futuro, vais sofrer, e como tenhas saudades o passado, também.