Não percamos o Norte
Entrevistamos a Lara e María, as donas deste restaurante de Barcelona que leva catorze anos alimentando o corpo e o alma dos vizinhos, mas que agora sofre com a subida do custo da matéria prima
Sentamos-nos no terraço, ao sol. Prende-se algum que outro cigarro e começa a palestra, porque é mais uma conversa a três que uma entrevista propriamente dita. Falamos do passado, do presente e do futuro desta casa de comidas que se converteu, a base de exquisiteces e um serviço amável e próximo, numa parte inseparável do tecido social desta zona do Eixample barcelonés.
É uma manhã qualquer de dezembro, estamos no restaurante Norte e as que falam são María González e Lara Zaballa, uma vascã e uma galega, já umas pouco catalãs, que dão de desayunar e de comer aos vizinhos do bairro desde faz catorze anos. E esperamos, de todo paladar, que sigam muitos mais, porque Barcelona não se pode permitir o luxo de perder o Norte.
--Como nasce o Norte?
--María: Nasce das segundas-feiras ao sol.
--Lara: Foi num momento no que estávamos as duas em desemprego, fizemos umas lentejas em casa e dissemos: 'Jobar, que ricas e daí fácil!'.
--María: Eu acho que foi nos olhar e dizer: 'Por que não montamos algo?'. Uniu-se um cocinero amigo e pusemos-nos a procurar locais pequenos, mas era complicado encontrar um restaurante com um traspasso que pudéssemos pagar e que desse para três nóminas… Até que apareceu este, que nos dava esse ponto de cafeteria, porque a ideia do projecto sempre foi a de trabalhar cafés da manhã e comidas.

--E assim seguis, catorze anos depois, abrindo a primeira hora e fechando às cinco da tarde…
--María: Levávamos muitos anos na restauração e tínhamos claro que queríamos compatibilizar o trabalho com a vida.
--Lara: Assim é. Os três conhecemos-nos trabalhando no hotel Omm quando lhe deram a estrela Michelin a seu restaurante, e sempre tivemos claro o que dizia María, que queríamos viver. Porque gostamos muito o que fazemos e queremos que nos siga gostando.
--O que fazeis gosta tanto que vossa famosa tortilla se acaba a meia manhã…
--María: Em Norte somos de café da manhã em plano bem, com tortilla de batata ou tortilla francesa, o pão de um obrador próximo, um bom bocadillo de fuet… E nos segue funcionando bastante bem. De facto, os cafés da manhã têm sido o motor que nos manteve a flutue quando as coisas têm vindo mau dadas.
--A comunidade acolheu-vos de maravilha…
--Lara: É incrível. Somos de fora e neste canto do Eixample, neste cruze de Bruc com Diputació, é incrível a quantidade de bairro que há, a gente se conhece, se cumprimenta… Lembrança uma amiga e cliente australiana, que já se foi, que nos dizia: 'Homem, isto o conseguistes vocês. Tendes feito de Norte um ponto de reunião muito bonito'.
--María: O 99% de nossa freguesia são vizinhos e trabalhadores do bairro.
--Lara: Montam-se umas sinergias muito chulas.
--María: É algo muito transversal.
--Lara: Sim, vem às vezes a desayunar a senhora da cobertura, senta-se com a que limpa a portería e se põem a charlar. Depois há dias nos que todos se conhecem porque são trabalhadores da zona…
--María: Ou gente que se conheceu aqui.
--O cariño e a delicadeza que há na cada plato se percebe desde o primeiro bocado, e isso o comensal o aprecia, o valoriza e o quer em seu dia a dia.
--Lara: Fazemos cozinha de mercado com regusto a norte, evidentemente, porque vimos de onde vimos, e é uma cozinha de mercado bastante caseira, no bom sentido. Somos muito conscientes de que abrimos só médio dia e a gente a meio dia, salvo algumas sextas-feiras, vem com outro karma para depois voltar a trabalhar. Por isso é uma cozinha muito ligeira, muito limpa, como eu cozinho. É o que me sai porque é o que tenho visto sempre cozinhar em casa, e também em casa de María, porque meu pai é basco, como sua mãe, e daí esta cozinha de mercado, singela, porque no Norte as elaborações nunca são muito complicadas.
--Tenho entendido que trabalhais com provedores da zona.
--Lara: Trabalhamos com um provedor de verduras, Can Fisas (Molins de Rei), que é um presente e é o que mais nos marca os platos e as guarniciones. Temos um plato de inverno, que é a calabaza com cacahuete e com achicoria, que nasce do que dantes era uma guarnición. Gostava tanto que o convertemos em plato.
--O pescado também é peça finque em Norte.
--Lara: Temos um provedor de aqui, que também trabalha com Mercabarna e nos traz pescado fresco, do dia, que o servimos ao ferro.
--De onde saem as receitas?
--Lara: De minha cabeça e da cozinha tradicional do norte. A merluza rebozada é um clássico.
--María: É um jantar típico.
--Lara: Temos feito judias verdes com batatas e uma maltratada, acelgas com batatas, ou a tortilla de bacalhau. E depois há outras pois que, por bagaje, se vão ficando.
--Quais são os três platos estrela?
--Lara: O bocadillo de calamares, que em Galiza se comeu sempre, e os calamares os fazemos ao ferro, não é fritado, para conseguir que o ponto seja mais acertado, e o pan está eleito para que não tenha protagonismo.
--María: A merluza à romana, o pescado do dia e os platos de verdura.
--Lara: As verduras de temporada são um plato vegetal que está riquísimo. É um plato precioso de verduras à galega. Faz-se com uma espécie de maltratada, pimentón, vinagre de Jerez… É como um puré de coliflor com todas as verduras cocidas em seu ponto, a cada uma a seu corte, e com a maltratada… A gente flipa!
--Alguns comensales ter-se-ão surpreendido ao ver que já não há Coca-Bicha em Norte. Como nasce esta arriscada decisão?
--María: Já quando abrimos faz catorze anos nos pesou por uma questão ética, moral, de princípios, por todo o que implica Coca-Bicha como empresa e a nível ecológico. Também é verdade que quando começas o fazes com certos medos e não te queres pôr restrições. Também não naquela época existia uma alternativa que estivesse mais ou menos consensuada, mas, a longo do tempo, a cada vez pesava mais. E a nós, a nível de empresa, ao ser pequenas, nos tratavam muito mau. A cada vez as condições iam a pior. Temos demorado treze anos em conseguir que nos domiciliem uma factura. Tinha que o pagar tudo em numerário. É uma coisa que a mim me fascina. Ou seja, os repartidores vão com 6.000 euros no bolso e como falte um céntimo o têm que pôr de seu bolso. Todo mau. E Fritz-kola levava um tempo ressoando…
--Qual tem sido o recebimento?
--María: A resposta tem sido bastante boa. Há gente que se passou a Fritz e há gente que não e se toma um Vichy, um zumo ou um água e não passa absolutamente nada. Ninguém tem deixado de vir porque não tenhamos Coca-Bicha.
--Também não trabalhais com Glovo e empresas do estilo, não?
--María: Não. Foi uma decisão desde o início pelas condições trabalhistas das pessoas que trabalham para eles, depois pela percentagem enorme de teu trabalho que ficam só por te dar uma visibilidade, e também porque ao fazer uma produção maior o produto se perverte. Não é o mesmo fazer quatro tortillas ao dia que fazer quarenta. E depois, ao ver como têm evoluído este tipo de empresas, é algo com o que não comulgamos.
Lara: Durante a pandemia, que é quando fazíamos mais comida para levar, começamos a trabalhar com um garoto de aqui, que vai em bici e cobra 9 euros mais IVA pela cada envio. Agora o envio a domicílio é bastante residual.
--Estais ao lado de um filatelia de 1878 e vocês levais quase três lustros. Como tem mudado esta zona do Eixample?
--María: Temos visto mudar bastante o bairro. Tinha bares e restaurantes de toda a vida que têm fechado. Estamos rodeados de locais de brunch. Nós sempre dizemos que se abrem qualquer coisa de qualidade estaríamos encantadas, porque ao final a concorrência também gera sinergias. Mas não se produziu. A cada vez abrem mais lugares de café de especialidad, de brunch e Vivaris. E também não são concorrência.
--Lara: Somos como a aldeia gala de Astérix, que resiste no império dos grandes grupos de restauração, das fábricas de comida, da cozinha de catering, que está feita com conservantes, aditivos e sulfitos para trazer da fábrica ao restaurante. E isso ninguém to diz. Aqui está facto ao dia. Nossa frase é: 'Aqui cozinha-se'. Aqui não há croquetas congeladas.
--María: Ao final, o que se toma o bocata de fuet aqui não te muda pelo bocata de SandwiChez. São coisas muito diferentes. É uma barra de pan feita a cada amanhã no obrador de Tito, no Forn Sant Josep, que está feita com azeite de oliva virgen extra e tomate para valer, não com tomate de bata pára untar.
--Lara: Embutido do mercado.
--María: O que se acostuma a comer aqui sempre volta. É outro preço, porque se não não seria sustentável, mas senta bem e o desfrutas.
--Lara: Os clientes dizem-no-lo: 'Que maravilha de platos e daí bem sentam!'. Isso é muito bonito.
--O Norte nasceu das segundas-feiras ao sol, como sobrevive catorze anos depois?
--María: Temos vivido muitas. Abrimos num dos piores momentos económicos da história de nosso país, em 2011, e chegamos a ir a catorze entidades bancárias a pedir um crédito. O de Barcelona Ativa punha-nos como exemplo de perseverancia. Então…
--Lara: Estamos acostumadas a nadar a contracorrente.
--María: Sabemos lutar contra a precariedade. Nas temporadas boas fazemos huchita, porque depois virão outros tempos…
--Norte é mais uma casa de comidas que um negócio?
--María: Sim, tem que ser um negócio para sobreviver, mas sobretudo é o lugar que gostaríamos de ter embaixo de casa. A onde gostaria de ir a desayunar ou a comer a diário? Aqui.
--Fazemos uma muito boa gestão, mas agora estamos a passar um momento complicado. Subiu-nos um 30% o custo da matéria prima e não o podemos repercutir no preço, porque então a gente deixaria de vir e teríamos que fechar.



